terça-feira, 30 de outubro de 2012

669 - "PLAYGROUND"




Quando criança, eu adorava brincar pelas tranquilas ruas de Várzea Alegre. Correndo livremente pelas calçadas e becos da pequena cidade cearense, com os pé descalços pisando os lisos e desgastados paralelepípedos, jogava bola e participava de muitas outras atividades ao ar livre. Minha mãe não se preocupava, pois sabia que naquela época não havia qualquer risco fora de casa.

Outros colegas mal saíam de suas residências para acompanhar nossas brincadeiras, a mãe logo acabava com a alegria deles, soltando os pulmões pela janela:

- Meninnoooooo, sai da rua. na hora de dormiiiiir...

Nas regiões amazônicas as crianças também curtem seus espaços e cenários para se divertir e viver intensamente a bela fase da infância. Parte da população ribeirinha vive em palafitas, andando sobre estreitas pontes de madeira. Costuma-se dizer que, em alguns municípios, como o Afuá, a Veneza Marajoara, a mãe vai à janela e grita pelos filhos que, na maré baixa, brincam no leito seco e enlameado do rio:

- Pequeeeeeno,  sai debaixo da rua e vem pra casa....


(imagem Google)

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

668 - RELÓGIO (Pedra de Clarianã há dois anos)





           O homem sempre buscou se orientar sobre o tempo. Ao longo da história, usou vários instrumentos para contagem das horas, desde os equipamentos com auxílio do sol até os precisos relógios de hoje.

          No início da década de 1980, os irmãos Klébia, Klecin e Manin deixaram a pequena Várzea Alegre para estudar e trabalhar em Fortaleza. Com o apoio da família, mesmo com limitações e dificuldades, os jovens decidiram enfrentar a vida na capital cearense.

          Nesse período, Klecin arrumou um emprego em uma empresa de pinturas. Não adiantou a ponderação de seus irmãos para que usasse o pequeno salário com necessidades mais prementes. Quando recebeu o primeiro pagamento, Klecin realizou seu desejo e gastou todo o dinheiro comprando um relógio.

         No final de semana seguinte, sem dinheiro, com poucas roupas no armário, mas já com a nova aquisição no pulso, Klecin pedu ao irmão:

         - Manin, me empreste uma camisa sua pra eu ir no show de Ednardo no ginásio Paulo Sarasate.

    Ainda chateado com a opção feita pelo irmão, Manin respondeu duramente:

         - Esse bicho véi!!! Vá vestir seu relógio..

        No dia seguinte, Klecin novamente solicitou ao irmão:

       - Manin, vou jogar bola na pracinha do Jardim América. Posso usar seu kichute* ?

        - De jeito maneira. Calce seu relógio novo...

Colaboração: Klébia Fiúza
(imagem Google)
* Kichute é um calçado, misto de tênis e chuteira, produzido no Brasil desde a década de 70 pela Alpargatas, teve seu ápice entre os anos de 1978 e 1985(fonte: Wikipédia)

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

667 - PICOLÉ PREMIADO




Em meados da década de setenta, na pequena e acolhedora Várzea Alegre, o Bar de “Nego de Aninha”, estabelecido na antiga Rua Major Joaquim Alves, resolveu diversificar a atividade e  ingressar fortemente no ramo do picolé. E para alavancar as vendas logo apresentou a promoção do palito premiado.

Foi uma doce época em que os meninos e as meninas da cidade cearense saboreavam os picolés de coco queimado, goiaba, manga, cajá, tamarindo, ou outros sabores, ansiosos para ver se o palito trazia o carimbo borrado e pouco legível  do Bar de Nego de Aninha. Era o bastante para ter direito a um outro delicioso gelado.

Pouco dias após o início da promoção, o número de garotos agraciados com o prêmio aumentou vertiginosamente. Eram tantos os contemplados que os vendedores externos -  picolezeiros - voltavam ao bar empurrando o carrinho cheio de palitos carimbados.

         Preocupado com a queda na arrecadação, Francisco Gregório da Costa, conhecido por todos como Nego de Aninha, chamou seu filho Antônio, responsável pela preparação dos picolés,  e perguntou:

         - Tontôi, você numcarimbano palito demais não?

        O filho, já desconfiado com as fraudes praticadas pelos garotos da cidade, respondeu:

         - Pai, eu num tou não, mas os fregues dos picolés tão carimbano adoidado...


(imagem Google)

sábado, 20 de outubro de 2012

666 - AS AVENTURAS DE JOÃO PASSO BABÃO



Meu tio Paulo Danúbio, no início da década de setenta, mudou-se para Fortaleza, onde passou a trabalhar e estudar. No entanto, adorava gozar férias e outras folgas em sua querida cidade natal, Várzea Alegre, invejável costume que mantém até hoje.

Sempre que voltava ao acolhedor sertão do cariri, o varzealegrense alegrava a família com sua agradável presença, e, principalmente, encantava a meninada com as interessantes histórias que contava.

Todos os finais de tarde, durante as férias, na sala da minha casa, formava-se uma enorme roda de crianças em volta do tio Paulo para ouvir as suas empolgantes narrativas. Como ainda não passara pela avassaladora invasão do vídeo-game, da internet e da televisão, vários meninos eram atraídos pelo lúdico momento, inclusive alguns vindos de ruas mais distantes. Todos desejavam ouvir as peripécias dos personagens fabricados pela mente criativa do simpático e irreverente contador de histórias.

Mas nem sempre a programação iniciava no horário marcado. Em alguns dias, tio Paulo se metia pelos bares da pequena cidade cearense e, por força do álcool, esquecia momentaneamente o seu fiel e pontual público infantil.

Felizmente a ansiedade do garotos durava pouco e findava completamente quando tio Paulo apontava na esquina da entrada do Beco da Liberdade, apelido carinhoso da minha pequena e estreita viela. Com a chegada, a meninada se reunia a sua volta e meu tio retomava a narração da história. Para ganhar tempo, recuperando na memória o final do capítulo anterior e buscando criar os novos passos do protagonista, ele enrolava:

  - João Passo Babão muntou no cavalo, rumou pela estrada...

Como um bom sonoplasta, reproduzindo os sons da ação, Paulo Danúbio engabelava os atentos garotos até retomar a narrativa:

- E João Passo Babão continuou o galope no seu cavalo: pocotó, pocotó, pocotó, pocotó, pocotó, pocotó, pocotó pocotó, pocotó, pocotó ...


(imagem Google)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

665 - SEGUNDA-FEIRA (Pedra de Clarianã há dois anos)





         No final da década de 1980, em Fortaleza, meu querido primo Aeldo Junior trabalhou em uma empresa de pesca de lagosta, atividade importante na economia cearense.

          Nessa época, após um final de semana de muito forró regado por exageradas doses de vodca, Aeldo Junior acordou muito mal na segunda-feira. Mesmo com forte enjôo e latejante dor de cabeça, conseguiu bravamente trabalhar no expediente da manhã. Mas após o almoço a situação piorou e Aeldo não conseguia se concentrar na sua atividade. Suando frio e com intensa ânsia de vômito, resolveu falar com a sua superior, apresentando uma desculpa para ir curtir a ressaca em casa:

         - Chefinha, eu tenho um pagamento pra fazer no Bradesco, a senhora me deixaria sair um pouco mais cedo?

        A chefa, com polidez, consentiu com a saída antecipada do funcionário, mas também pediu:

           - Aeldo, olha que coincidência. Tenho umas contas do Bradesco pra pagar também. Aproveite e faça esses pagamentos pra mim? – disse a chefe, entregando um bolo de carnês ao agora desesperado funcionário.



(imagem Google)

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

664 - BOMBARDEANDO O MILITAR (Pedra de Clarianã há dois anos)


          Na década de oitenta, os varzealegrenses Klébia, Klecin, Manin Socorrinha moraram em uma modesta casa do Bairro Montese, em Fortaleza. Seguindo o mesmo caminho de outros conterrâneos, com dificuldade, mudaram-se para a capital alencarina em busca de novos conhecimentos e trabalho.

          Naquela época, Socorrinha namorou um sério militar da aeronáutica que sempre visitava a residência do Montese. O namorado se comportava como se vigiasse o quartel, com semblante fechado e mantendo a postura disciplinada da caserna.

          Nas visitas, Socorrinha e o militar sentavam em cadeiras de ferro do jardim, enquanto os irmãos Klébia, Manin e Klecin assistiam ao popular programa do Irapuã Lima na velha tv da sala. Aqui e ali, o namoro era interrompido por Manin, que ia ao jardim e passava a mão na barriga, reclamando que o baião de dois com piqui não lhe fizera bem. A cena se repetia várias vezes e sempre Socorrinha exclamava:

          - Eita minino podre!!!

          Certo dia, Manin se empolgou na TV e não saiu para o jardim da casa, onde os namorados permaneceram sozinhos. Quando se despediu do militar, Socorrinha entrou rapidamente na sala e disse:

          - Ei ManinTu tá surdo hoje? Bati várias vezes na cadeira dando sinal para você ir lá comigo e você não foi. Você quer que eu morra com nó na tripa segurando peido?

          Manin, que recebia cinquenta centavos da prima por cada bufa assumida, justificou:

         - Valha, eu esqueci. Me empolguei com o show de calouros de Irapuan Lima e nem ouvi as batidas na cadeira.

Colaboração:Klébia Fiúza
(imagem Google)

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

663 - A INCLUSÃO DE LULU




Francisco Miguel Neto, conhecido como Lulu, viveu por 61 anos em Várzea Alegre. Portador de síndrome de Down, marcou pela sua simpatia e irreverência. Exímio jogador de xibiu*, andava pelas calçadas e entrava em todas as casas daquela pacata cidade cearense, onde costumava tomar banho e comer.

Em um começo de tarde da década  de setenta, Lulu, trazendo sua inseparável bola debaixo do braço, chegou à residência de Francisco de Freitas Pinheiro (Chiquin de Louso), na rua José Correia Sobrinho. Conhecendo o insaciável apetite do contumaz visitante, Maria Dalva Teixeira Pinheiro, dona  da casa, perguntou:

- Lulu, você já almoçou?

Puxando a cadeira e se juntando à família Pinheiro Teixeira  na mesa da refeição, Lulu, com sua sua ingênua sinceridade, respondeu:

- Aqui não...

* jogo com pequenas pedras à época comum em Várzea Alegre que possui vários outros nomes ao redor do país: três marias, jogo das pedrinhas, nente, belisca, capitão, liso, epotatá (em tupi, quer dizer “mão na pedra”), jogo do osso, onente, bato, arriós, telhos, chocos e nécara.

Colaboração: Francisco Carlos Pinheiro

(imagem Google)

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

662 - ENCONTRO NO MOTEL




Há algum tempo ir a um motel deixou de ser encarado como um programa promíscuo. Hoje, muitos frequentam esses locais para manter a chama acesa ou até mesmo para se divertir. Existe motéis para os românticos, os modernos, os antenados ou os ousados, vários deles com muito conforto, luxo e e surpresas.

No início da década de noventa, recém chegado à Macapá, marquei um encontro com uma moça em um motel denominado Pau Preto, localizado no bairro central da cidade, área residencial e bastante movimentada. Os quartos do indiscreto estabelecimento eram bem simples, com paredes de madeira e não possuíam sequer banheiros privativos. Mas, na época, eu não conseguiria pagar um local mais caro e sofisticado.

No dia acertado, como estava atrasado e para não ser identificado pelas pessoas da rua, desci a ladeira da Avenida Presidente Vargas em alta velocidade. Chegando ao estabelecimento encontrei a jovem me esperando na pequena recepção. Nervosa, um pouco irritada e mostrando o relógio, ela me perguntou:

- Por que você demorou tanto?

Suado com o esforço físico para chegar até ali, mas ansioso para o momento de intimidade, pus a tranca com cadeado no meu veículo e respondi:

- É que o pneu da bicicleta tava furado…


(imagem Google)

domingo, 7 de outubro de 2012

661 - SORTE NA CHUVA (Pedra de Clarianã há dois anos)




        Na década de oitenta, em Várzea Alegre, no bar de Zé Caetano, não faltava uma rodada de “Fó e Bata”, jogo de baralho preferido pelos frequentadores do local.

        Certo dia, a sorte nas cartas não acompanhou João de Dora. O azar do barbeiro devia ser por conta de uns curiosos – chamados perus - que rodeavam a mesa do jogo. Porém, Chico Bode, outro jogador, não foi afetado, pois ganhou todas as partidas.

      Depois de perder todo o dinheiro apurado na barbearia, João de Dora jogou as cartas na mesa, coçou a cabeça, e, com sua voz arrastada, lamentou:

    - É danado! Além de ter alisado inda tá chuvenoCuma é que eu vou pra casa agora?

     Em meio aos estrondos dos trovões, o sortudo Chico Bode disse:

        - Pelo meno você num móia o dinheiro...


Colaboração: Carlos Leandro da Silva(Carlin de Dalva)

(imagem Google)

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

660 - OBRA ESGOTADA




Eu e meu querido primo Sérgio Ricardo cursamos o ensino médio, à época segundo grau, em Fortaleza, no tradicional Colégio Cearense Sagrado Coração, renomada instituição que infelizmente encerrou suas atividades em 2007, após quase cem anos educando e formando jovens.

Nosso dedicado professor de literatura do Colégio Cearense, além de estimular constantes visitas à biblioteca da escola, recomendou aos alunos a compra de alguns livros que seriam usados na apresentação do trabalho de classe. Dias após a indicação do mestre, Serginho me falou da sua dificuldade:

- Andei nas livrarias do centro tudin e não achei o livro.

- Foi mesmo, Sergin? Mas o professor disse que era fácil de encontrar.  Quem é o autor do livro que você procurou?

- Policarpo Quaresma.

- Policarpo QuaresmaRealmente nunca ouvi falar desse escritor. E qual o título do livro?

- Triste Fim.

Depois descobrimos que meu querido primo não encontrou o romance porque fez uma pequena confusão, trocando o autor pelo personagem citado no título do livro. Na verdade, a indicação do professor faz parte da obra do escritor e jornalista carioca Lima Barreto, com o título Triste Fim de Policarpo Quaresma. Uma história vivida no final do século XIX por um funcionário público nacionalista e patriota extremado .


(imagem Google)

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

659 - POLITICAMENTE CORRETO (Pedra de Clarianã há dois anos)





              Atualmente se exige redobrada atenção para o uso de palavras politicamente corretas. Algumas receberam sinal vermelho e devem ser descartadas. Cartilhas oficiais recomendam substituir negro por afrodescendente, pobre por menos favorecido, cego por deficiente visual e favela por comunidade.

        Muito embora haja certo exagero, algumas palavras realmente carregam um tom preconceituoso e grosseiro. Mas o cuidado com o que se fala não para por aí. Cabe também evitar certas perguntas cujas respostas causam enormes constrangimentos. É seu filho? Não meu marido. É seu pai? Não, meu esposo.

        Certo dia, reencontrei uma amiga que não via há alguns meses. Sabendo da sua gravidez, percebendo que ela apresentava uma barriguinha bem saliente, perguntei:

         - E esse bebezinho? Quando nasce?

         Minha amiga, com um sorriso amarelo, respondeu:

         - O bebezinho nasceu há seis meses.


(imagens Google)