quarta-feira, 30 de setembro de 2009

86 - TEREZINHA PÃO E VINHO





         O cine São Luiz também marcou a vida da minha mãe. Ao ler a postagem “lanterninha”, ela recordou detalhes da inauguração daquele belíssimo cinema. Era 1958 e Fortaleza ainda contava com cerca de quinhentos mil habitantes. Pela terceira vez Terezinha se mudava temporariamente para a Capital Alencarina. Aldair estava grávida de Maria Amélia e novamente precisou do auxílio e apoio da irmã mais nova.

         Naqueles dias, a cidade vivia um clima festivo por conta da nova casa de cinema do empresário cearense Luiz Severiano Ribeiro. Ainda pouco acostumada com as novidades da capital, Terezinha ficou deslumbrada com a possibilidade de assistir a um dos filmes da mostra de inauguração. Assim, levada por seu irmão João Costa, a menina foi ver a emocionante película espanhola Marcelino Pão e Vinho.

         Na famosa Praça do Ferreira, ainda na fila formada em frente à bilheteria do cinema, percebeu que aquele mundo era bem diferente da realidade da sua pequena Várzea Alegre. Os homens trajavam paletós bem cortados; as mulheres esbanjavam elegância em suas roupas. Ao contrário da opulência dos presentes, a pequena garota usava um modesto vestido de tecido comum na época - túlio, que seu pai ganhara em uma rifa.

        A história do menino criado por monges franciscanos, a imponência e a sofisticação do novo cinema e a aparência nobre dos expectadores permaneceram na sua imaginação.

        Depois de vários meses em Fortaleza, voltou para Várzea Alegre. No reencontro percebeu que uma amiga, também adolescente, crescera bastante. Embora não tenha aumentado sua estatura no tempo que permaneceu na capital, a pequena Terezinha logo se conformou, afinal vivera como gente grande na inauguração do tradicional Cine São Luiz.


(imagem Google)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

85 - LANTERNINHA





          O sinal de televisão com qualidade, sem chuvisco e chiado, demorou a chegar ao sertão cearense. Somente no final da década de setenta, com o surgimento das antenas parabólicas e outros meios modernos de retransmissão, foi que passamos a acompanhar com regularidade os programas televisivos.

          Em férias escolares, quando eu viajava para Fortaleza me contentava em ficar o dia inteiro diante do aparelho de televisão vendo desenhos animados. Nada desviava minha atenção da Pantera Cor de Rosa, do Tom e do Jerry ou do Marinheiro Popeye. E se a televisão em preto e branco de minha avó Maria Amélia já me encantava, imagine ver uma comédia infantil na tela gigante de um moderno e confortável cinema. Pois, em uma dessas viagens, no ano de 1977, meu tio Paulo Danúbio me levou junto com meu primo Sergio Ricardo para assistirmos no famoso cine São Luiz ao filme campeão de bilheteria daquele ano: O Trapalhão Nas Minas do Rei Salomão.

          Encantados com a beleza do cinema, eu e Serginho nos divertíamos com as graças e estripulias dos personagens de Renato Aragão, Dedé Santana e Mussum. No meio do filme, fomos surpreendidos com um avião de papel que voara pela projeção e caíra sobre nós. Eu, de imediato, apanhei o avião, e o arremessei novamente. A sombra do avião foi projetada na grande tela.

          Pouco tempo depois chegou um senhor com uma lanterna na mão e chamou tio Paulo.  Os dois conversaram baixinho por algum tempo. Embora concentrado no filme, eu percebi que meu tio gesticulava muito e nos apontava insistentemente.

          Logo na saída do cinema, ainda na movimentada e tradicional Praça do Ferreira eu perguntei:

         - Ti Paulo, o que aquele homem da lanterna queria com o senhor?

         - Comigo nada. Ele queria era botar vocês pra fora. Não pode jogar papel pra cima. Atrapalha o filme. Ele só desistiu quando eu disse a ele assim: “Seu lanterninha esses mininos vieram do interior. Viajaram quase quinhentos quilômetros só pra ver os Trapalhões”.


(imagem Google)

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

84 - SECANDO A PISCINA




          Não é só um sorriso fácil que desperta simpatia. Outros gestos, também nobres, permitem a afeição, a amizade e o reconhecimento de todos. Meu padrinho José Iran Costa, de bigode e cara fechada, não precisava mostrar os dentes para ser simpático. Sua vida pública e seus serviços prestados possibilitaram um elevado conceito entre as mais diversas classes sociais de Várzea Alegre. Sem esquecer que o dedicado médico possuía um jeito diferente e bem humorado de emitir suas opiniões e contar histórias.

          No Bairro Betânia ou no Sítio Baixio do Exu doutor Iran patrocinou inúmeros momentos de alegria. Certo dia, uma dessas festas já avançava por todo o final de semana como comum nos encontros da família. Seus filhos, sobrinhos e amigos bebiam e comiam sem parar. Em dado momento, seu irmão Irapuan comentou:

          - Iran, você devia mandar encher essa piscina. Não é bom a piscina ficar seca, pode até causar rachadura.

          O experiente médico, observando de longe o movimento dos incansáveis festeiros, tirou seu cigarro de fumo da boca e disse calmamente:

          - Irapuan, meu irmão, você é engenheiro e entende de rachadura. Mas quem é doutor nessas festas aqui na Betânia sou eu. Se com a piscina seca já faz três dias que eles bebem e comem a minhas custas. Você imagina se eu encher essa piscina.


*colaborador: Irapuan Costa
(imagem Google)

domingo, 13 de setembro de 2009

83 - BAIÃO 'VERSUS' PIZZA




          Com cerca de quatorze anos de idade, no à época isolado sertão cearense, meus hábitos alimentares eram bem ortodoxos. Em casa, como comum, o fogão funcionava de acordo com a rotina do mercado de carnes da cidade. Em cada dia da semana minha mãe servia um prato diferente. Lembro que toda sexta, dia da matança dos animais, tinha fígado de boi no jantar. No almoço do sábado, apreciávamos a “carne batida”, conhecida em outros lugares como picadinho. A deliciosa galinha caipira só enfeitava o cardápio do almoço dos domingos.

          Hoje lembrei que graças ao meu padrinho José Iran Costa conheci a culinária de outros lugares. Eu estava no Crato para passar apenas o dia curtindo o parque de exposições, e Iran Junior e seu pai convenceram meu pai para que eu ali permanecesse no tradicional evento do interior nordestino.

          Assim eu fiquei por mais uns dias no progressista Crato junto com doutor Iran e sua família. Foram dias inesquecíveis, repletos de divertimentos e novidades. Em um fim de tarde, fomos a um restaurante e nos foi servido algo diferente. Uma massa com coberturas coloridas trazida em uma forma arredondada. Eu estava sendo apresentado à pizza. Quando madrinha Lolanda me ofereceu o tradicional prato italiano, eu, garoto tímido, mesmo sem nunca ter provado da estranha comida, por não saber sequer como me servir, disse:

          - Obrigado madinha, eu não gosto dessa pizza.

          Assim, eu jantei com o meu padrinho Iran um tradicional baião de dois, enquanto com o canto do olho observava seus filhos Guilherme e Iran Junior, usando estranhos molhos vermelhos e amarelos, degustar a aparentemente saborosa massa italiana.


(imagem Google)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

82 - GUIA ENFEZADO

         Os estudiosos em neurolinguística defendem que o cérebro só registra o não quando usado em uma negativa simples. Por outro lado, acompanhando uma imagem o não é ignorado pela mente. Assim, frases como não fume ou não beba, ao contrário do que se pretende, constroem imediatamente na imaginação de quem as ouve o cigarro ou a bebida.

         Meu tio materno João Gonçalves Costa ainda muito jovem deixou o sertão cearense e foi sentar praça* no sul do país. A partir daí não mais voltou a residir na pequena Várzea Alegre. Morando em lugares distantes, desenvolveu uma forma original de ensinar os recém-chegados a andar pelas grandes cidades.

         Sempre com os nervos à flor da pele, quando alguém precisava aprender um novo caminho para o trabalho ou para a escola o magro e mouco João Fosquin, contrariando a lei da atração e outras teses modernas de reprogramação mental, ensinava:

         - Tá vendo aquela igreja ali na frente? Não vá por ali. Se for por lá, você se perde. Vá por aqui – finalizava o impaciente guia, virando-se e apontando em direção oposta ao templo inicialmente referido.

* alistar-se nas forças armadas

sábado, 5 de setembro de 2009

80 - SLOW FOOD


        A agitação e a correria da vida moderna impõem a prática de refeições rápidas. Cada dia aumenta o número de estabelecimentos comerciais que oferecem o fast food. Sempre apressadas, muitas pessoas sequer sentam para ingerir o alimento, ocasião que ainda tratam de assuntos desagradáveis e inadequados para o importante momento.

         Mas no início do século passado, na cidade de Várzea Alegre, meu bisavô Dirceu de Carvalho Pimpim cultivava hábitos bem mais saudáveis. Mesmo com muitas propriedades e intensos negócios para administrar mantinha uma vida regrada e metódica.
         Seu Dirceu deitava e acordava cedo, ia à mesa para farto café da manhã, mantinha cuidado com a aparência física, estimulava a ingestão de frutas, se protegia do causticante sol do sertão cearense, lavava as mãos antes das refeições e já possuía em casa água encanada e banheira para completa higiene corporal. Para lazer e contemplação da família construiu uma casa no Brejinho, sítio próximo à sede do Município, e denominou Santa Rosa em homenagem à esposa Rosa Gonçalves de Carvalho, tratada carinhosamente por todos como "Madrinha Dosa".

         No ano de 1917, Dirceu e Rosa almoçavam em sua casa quando alguém surgiu repentinamente na sala de jantar. Percebendo que se tratava de assunto grave, o Coronel Dirceu se levantou e foi ver o que acontecia. Um homem trazia péssima notícia. O Padre José Gonçalves, da paróquia de São Raimundo Nonato, irmão de Rosa, fora encontrado morto no sítio Bonizário. Mesmo transtornado com a inesperada notícia do falecimento do seu querido cunhado, Dirceu calmamente disse ao mensageiro:

       - Pode deixar que eu mesmo aviso a “Dosa”.

       Com a certeza de que o horário das refeições é sagrado e não permite assuntos desagradáveis Dirceu voltou à mesa e continuou comendo. Só cerca de uma hora após o almoço, com a digestão dos alimentos praticamente concluída, chamou sua amada mulher e relatou a tragédia acontecida com o Padre José Gonçalves.

        Certamente, atitudes como esta influenciaram na longevidade dos meus bisavôs, pois o casal viveu por quase cem anos e completou mais de setenta e cinco anos de casados, comemorando bodas de diamante.