segunda-feira, 30 de maio de 2011

398 - O DESEJADO CRATO (Pedra de Clarianã há dois anos)



          Arivaldo Siebra, primo de Alberto, morava no desenvolvido município do Crato, mas com freqüência passava as férias em Várzea Alegre, hospedando-se na casa dos tios Seu Zé Augusto e Dona Zulmira. Como havia nascido e se criado no progressista município caririense sempre trazia novidades e brincadeiras diferentes que deixavam os meninos Antônio Ulisses e Alberto boquiabertos.

           Numa dessas vindas à “Terra do Arroz”. Arivaldo convidou seu primo Alberto para ir ao Cariri, conhecer as novidades e os progressos daquela região.

           Antônio Ulisses, ouvindo atentamente o convite, desejou acompanhar seu amigo e vizinho na viagem. Porém, como não poderia, pediu a Alberto que, quando voltasse do passeio, lhe contasse detalhadamente como era o Crato. Alberto, muito sabido, asseverou que só contaria se o colega levasse sua mala até o caminhão misto de Seu Lourival Clementino, que partiria da frente da Prefeitura. Na época, não existiam as sofisticadas e leves malas de hoje. Estas eram feitas em madeira e pesavam bastante, mesmo quando ainda vazias.

         Sem conseguir esconder a ansiedade, no dia marcado para o retorno, o garoto esperou o misto na entrada da cidade, onde é hoje o bairro Betânia, aproveitando pra pegar um “bigu”, pendurado na traseira do caminhão do Seu Lourival. Na boléia, cheio de pose, vinha o turista Alberto.

         Ao chegar no ponto de desembarque, Alberto determinou que seu amigo apanhasse a mala na carroceria do caminhão e a levasse de volta pra casa. Em face das novidades trazidas do Cariri, a bagagem pareceu ainda mais pesada; contudo o carregador, desejoso de ouvir as histórias, cumpriu com muito esforço a tarefa de trazer a mala até o interior da residência do Sr. Zé Augusto. Ao chegar ao destino, ainda ofegante, disse:

          — Pronto, Alberto, me conte agora como foi a viagem.
 
          O amigo, com muita banca, afirmou que, por estar cansado, iria se deitar e, somente no dia seguinte, falaria sobre a viagem. Assim, Antônio Ulisses já amanheceu o dia debaixo do hoje sexagenário “Pé de Figo”.

          Lá pelas tantas, finalmente, Alberto se acordou, e seu amigo passou a implorar pelas histórias prometidas. O pequeno turista disse que só contaria depois que merendasse. Ao findar o café da manhã, Alberto finalmente resolveu contar as novidades ao seu amigo.

         Antônio Ulisses ouviu atentamente todas as histórias. Se, em Várzea Alegre, a água era trazida para as casas no lombo dos animais, dentro das ancoretas, no Crato, o precioso líquido jorrava de dentro das paredes das casas. Se aqui o velho motor gerador, de responsabilidade de Seu Julio e Zé Saldanha, só funcionava em parte da noite, no vizinho e à época distante município, a luz acendia de dia e de noite. Na capital do Cariri, havia gelo com gosto de goiaba, abacaxi e várias outras frutas. O nosso pobre menino não conhecia o delicioso picolé; só havia provado do gelo do bar do Seu Zé de Souza, que funcionava próximo do prédio onde hoje é o Armazém Progresso, de Seu Vandir Viana.

          Alberto não esqueceu de contar que, na Serra de São Pedro, na ida e na volta, ficou impressionado com a denominada “curva da morte”. Antônio Ulisses exigiu detalhes daquele perigoso e comentado trecho da estrada. Alberto, sem medo de exagerar, contou que a curva era tão fechada que, no meio dela, da boléia, dava para ver a traseira e a placa do caminhão.

           Por fim, Alberto disse que, no Cariri, havia o fascinante transporte ferroviário. O trem era uma fila de carros amarrados um no rabo do outro e o da frente dizendo:

           — Café com pão, bolacha, não; café com pão, bolacha, não.

          Em frente à estação ferroviária, havia uma bela praça e, naquele lugar, Alberto viu um galeguinho, parecidíssimo com o amigo de Várzea Alegre. Ouvindo calado e atento a todas essas maravilhosas histórias, Antônio Ulisses, com voz forte e suspirante, exclamou:

        — Ah se fosse eu!


* extraído do Livro Conte Essa, Conte Aquela - Histórias de Antônio Ulisses.

397 - ENCANTANDO O CLIENTE




          Os modernos consultores defendem que uma das principais regras para se tornar um bom vendedor é conquistar a confiança do cliente.

          Em Várzea Alegre, pequena e aprazível cidade do sertão cearense, o bodegueiro Luiz Silvino conquistou a credibilidade de seus fregueses em mais de sessenta anos de ininterrupto atendimento no balcão.

         Dias atrás, a aposentada Tereza Galdino Felix, conhecida como Tereza Bolacha, entrou na bodega e perguntou ao velho comerciante:

         - Luiz, tem vassoura de paia?

         - Tem sim. – respondeu o comerciante.

         - E a cuma é? – continuou a antiga cliente.

         - Cinquenta centavos.

         - É boa, Luiz? – insistiu a freguesa.

        O experiente bodegueiro, semblante fechado, atendendo simultaneamente outros clientes, com impressionante sinceridade, finalizou:

         - Tereza, tu já viu uma coisa de cinquenta centavo prestar?



(imagem Google)


sábado, 28 de maio de 2011

396 - O MÉDICO E O BANCÁRIO




          O varzealegrense Aluizio Máximo de Menezes, antes de nos deixar prematuramente, exerceu a medicina na sua cidade natal durante quinze anos com profissionalismo, humanidade e ética.

          Certa noite de sábado, no início da década de noventa, no calçadão Antônio Costa, Aluizio observava o intenso movimento do ponto de encontro de Várzea Alegre quando ali chegou o funcionário do Banco do Brasil, Maurício Bezerra.

          Com seu jeito extrovertido, Maurício sentou-se à mesa com o amigo médico e passou a conversar. Observando várias jovens passearem pelo calçadão, Maurício olhou para Aluizio e, engolindo algumas letras, indagou:

          - Meu querido, você já tem mais de dez anos como médico ginecologista. Todo dia tem muié no seu consultório. Você não enjoa de ver não?

          O discreto e tranquilo Aluizio arrumou seus óculos de grau e devolveu a pergunta para o amigo:

          - Mauricin, com tanto tempo de banco você já abusou o dinheiro?



Colaboração: Maurício Bezerra
(imagem Google)

quinta-feira, 26 de maio de 2011

395 - CIÚMES



         Os especialistas em relacionamentos sustentam que o ciúme pode até estimular o casal pois mantém um parceiro mais atento ao outro. Porém, se obsessivo, atrapalhando ou causando sofrimento, sinaliza que é chegada a hora do ciumento buscar ajuda.

           O funcionário público João Gonçalves Costa e sua esposa Vilani Batista Costa, nascidos em Várzea Alegre, tiveram cinco filhas em um casamento duradouro. Porém, qualquer situação provocava uma intensa crise de ciúme do marido.

         Certa manhã, na década de setenta, em Fortaleza, o casal voltava para a casa, no bairro Itaoca, quando, ao passar ao lado de um quintal cheio de plantas, Vilani, lembrando das roças do sertão, falou:

           - João, espia que pé de feijão mais bunito!!!

        O nervoso marido, conhecido como João Fosquin, em mais uma incontrolável crise de ciúmes, de cara fechada, verberou:

          - Pois se case com ele...



(imagem Google)

quarta-feira, 25 de maio de 2011

394 - A IDADE DA RAZÃO



          Nascido em 1891 na pequena cidade de Várzea Alegre, Dirceu de Carvalho Pimpim viveu com saúde por quase 100 anos. No alcance dessa rara longevidade, o varzealegrense, semianalfabeto, deixou exemplos de como cultivar hábitos saudáveis.

          No centro-sul cearense, por muitos anos de atividades agrícola, comercial e industrial, o coronel Dirceu acumulou considerável patrimônio. Mesmo com a vida cheia de negócios e atribulações, desviava de assuntos desagradáveis, especialmente nos sagrados momentos das refeições diárias.

           Lá pelos idos da década de sessenta, em seu Jeep da Willys, viajou a passeio para a vizinha cidade de Aurora, terra de sua querida esposa Rosa Gonçalves, conhecida como Dosa. Na casa de Dedé Gonçalves, irmão de Dosa, um farto almoço foi servido para receber os visitantes de Várzea Alegre.

          No meio da refeição, um curioso jovem perguntou:

            - Seu Dirceu, o senhor já tem quantos anos?

           O velho coronel, referindo-se a um primo e cunhado desconhecido de todos em Aurora, fugiu da resposta e escondeu a idade, dizendo:

            - Sou dois anos mais novo que Raimundo Otonni...


Colaboração Terezinha Costa Cavalcante

(imagem Google)

terça-feira, 24 de maio de 2011

393 - CARA OU COROA (Pedra de Clarianã há dois anos)


       
         Eu não devia ter mais que 8 anos. Como todo menino, aliás, como todo ser humano, já gostava de dinheiro. Assim, deitado no chão, de boca aberta, usando uma faca de mesa, violava o recheado cofre da minha irmã Flaviana, quando, por descuido, engoli uma moeda que escapou pela fenda da cobiçada caixa.
 
         Logo após sentir o objeto escorrer com dificuldade pela garganta, eu mesmo disparei o alarme, gritando e confessando minha peripécia. Uma correria se instalou em minha casa, todos preocupados com o inusitado acontecimento. Temiam que a moeda entupisse minhas tripas. Naquele mesmo dia fui encaminhado ao vizinho município de Iguatu, onde um médico, examinando uma radiografia de tórax, concluiu que a peça de metal já passara pelos tubos mais delicados do meu aparelho digestivo.
 
        De todo modo, por cautelosa recomendação médica, minhas fezes passaram a sofrer intensa investigação. Fiquei proibido de usar a privada. Somente depois de três dias, o dinheiro foi expelido no quintal da casa de tia Rosa Amélia. Carregando a moeda já um pouco enferrujada ou amarelada por outro motivo, eu e meu primo Serginho corremos em direção à Bodega do meu pai para comunicar a boa nova.

        Quando chegamos, tio José Cavalcante Cassundé, em meio a fregueses, conversava com meu pai no balcão do pequeno comércio. Diante de todos, “sem papa na língua” e com sua “voz de megafone”, tio Zé do Norte, como conhecido, espantado com o estranho fato, imediatamente comentou:
 
        - Meu irmão Luiz agora enrica de vez. Tem um filho cagando dinheiro.


(imagem Google)


segunda-feira, 23 de maio de 2011

392 - A FRIGIDEIRA DE VICENTE CARDOSO



        Em Mangabeira, distrito da cidade cearense de Lavras da Mangabeira, o bar mais conhecido e melhor frequentado pertence ao animado comerciante Vicente Cardoso. No animado estabelecimento, instalado em um imóvel de calçada alta, o cliente se serve do melhor tiragosto da pequena comunidade. O proprietário se especializou na culinária trabalhando por muitos anos como cozinheiro do político Chico Aristides.

         Vicente, além de atender diretamente os inúmeros fregueses, também comanda o velho fogão do boteco. Ali mesmo, na espessa frigideira, frita peixe, tripa, carne de porco, queijo de coalho, ovos, etc.

         Certo dia, um dos seus fieis clientes, tomando umas cachaças e se deliciando com uma apetitosa rabada de porco frita, perguntou:

        - Ei, Vicente. Tou veno a hora essa frigidêra batê o motô.

      O gordo e simpático comerciante, desconfiando do comentário, da frente do fogão, indagou:

       - Por quê?

       O cliente, após virar mais um copo de cachaça, concluiu:

       - É que nunca vi você trocano o óleo da pobe.



Colaboração: Tico de Francesinha

(imagem Google)

391 - O MENINO DAS CAJAZEIRAS (Pedra de Clarianã há 2 anos)



        Durante toda sua vida, Antônio Ulisses freqüentou o Sítio Cajazeiras. Manteve estreitos laços de amizade com vários moradores daquela conhecida comunidade rural.

        Numa dessas constantes visitas, após jantar um saboroso baião de dois, com fava e carne de porco torrada, sentou-se na agradável calçada da residência de Dudu de Chico Costa. Dali viu passar pela estrada um grupo de barulhentos garotos, dentre os quais um que se destacava pela falta de beleza. Sobre a aparência física do menino, comentou:

        — Dudu, quando esse menino terminar de ficar feio, no que é que vai dar?


* extraído do livro “Conte Essa, Conte Aquela – Histórias de Antônio Ulisses”

sábado, 21 de maio de 2011

390 - A BOIADA DE ZÉ DE FREITAS




        O conhecido esporte da vaquejada surgiu inspirado na difícil lida dos vaqueiros no meio da espinhosa vegetação da caatinga nordestina. Usando o gibão, perneira, chapéu e outras indumentárias de couro, o destemido homem do sertão, montado a cavalo, alcança e imobiliza a rês sumida ou desgarrada do rebanho.

          Em Várzea Alegre, na metade do século passado, o agricultor Zé de Freitas do sítio Arapuá, conhecido por suas inacreditáveis histórias, contava o caso de umas reses suas sumidas na região dos Inhamuns. Contratou famosos vaqueiros para buscar os animais, mas todos voltavam sem realizar o serviço por conta da dificuldade para encontrar o pequeno rebanho.

        Certo dia surgiu mais um vaqueiro se oferecendo para trazer o gado. Zé de Freitas, já sem muitas esperanças, autorizou uma última tentativa de localizar os animais. Após alguns dias o corajoso vaqueiro voltou ao Arapuá e trouxe o gado sumido nas capoeiras da caatinga.

         Aos escutar os aboios* do vaqueiro, Zé de Freitas foi imediatamente ao curral verificar a situação do rebanho recuperado. Caminhando entre os animais e conferindo as reses, o agricultor perguntou:

         - E esse bichin pulano ali no canto?

        - Valha, seu Zé, agora que tou veno mió. Tangi esse animal inté aqui pensano que era um bezerro. – disse o suado vaqueiro ao descer do cavalo e se aproximar do assustado e arisco veado.



* aboio é o canto dos vaqueiros do sertão chamando a boiada para o curral

Colaboração: Gilson Primo

(imagem Google)

quinta-feira, 19 de maio de 2011

389 - MARIA CAETANO


          O jogo do bicho, com números representando animais, foi inventado pelo barão de Drummond em 1892 para estimular as visitas ao jardim zoológico do Rio de Janeiro. A bolsa de apostas, mesmo ilegal, logo se espalhou pelo país e caiu no gosto do brasileiro.

          Em um fim tarde da década de setenta, em Várzea Alegre, no mês de maio, a cozinheira Maria Caetano participava da procissão em homenagem a Nossa Senhora, quando o cortejo passou pela antiga Rua Major Joaquim Alves.

        Ao chegar em frente ao estabelecimento onde funcionava a banca do jogo do bicho, a católica Maria Caetano, cantando o conhecido hino 13 de Maio, pôs a mão no bolso do vestido e, junto com o terço, retirou a pula* com sua aposta daquele dia. Baixinha, a velha senhora esticou o pescoço, mas não conseguiu conferir o resultado no quadro de avisos da banca do bicho.

         Sem perder o ritmo, Maria Caetano, dirigindo-se à amiga que seguia a sua frente, mudando a letra do hino, improvisou:

           - Você que é mais alta.

            Maió do que eu.

            Espie na banca.

            Que bicho que deu.

          A amiga de Maria Caetano, também viciada e profunda conhecedora do jogo de azar, observou o número "1" anotado no quadro afixado na parede do estabelecimento, e, também cantando, no ritmo do hino, respondeu:

         - Avé, Avé, Aaaveesstruz.

           Avé, Avé, Aaaavessstruz...



*Pula – folha de papel usada para anotação da aposta do jogo do bicho

Colaboração: Antônio Alves da Costa Neto

(imagem Google)

quarta-feira, 18 de maio de 2011

388 - O ARROZ DA TIMBAÚBA



        Em Várzea Alegre, na década de oitenta, o agricultor Zaqueu Guedes buscou a agência local do Banco do Brasil para realizar o financiamento da plantação de arroz na sua propriedade rural localizada no Sítio Timbaúba.

         Após uma longa espera, finalmente o gerente do Banco chamou Zaqueu para a mesa de atendimento e perguntou:

         - Seu Zaqueu, quanto o senhor vai precisar para tocar a lavoura de arroz este ano ? Quantas tarefas* o senhor vai plantar?

       - Dotô, lá adonde eu vou prantá é bem pertin de cem – respondeu o experiente agricultor.

        Cumpridas as formalidades, finalmente o banco aprovou e liberou para Zaqueu o empréstimo para a plantação de cem tarefas de arroz.

        Passados dois meses, o agricultor recebeu na sua propriedade a visita do fiscal do Banco do Brasil, responsável pelo acompanhamento da execução dos projetos de financiamento. Após observar e medir com rigor a roça onde fora plantado o arroz, com muita pose, o exigente funcionário do banco contestou:

        - Senhor Zaqueu, no cadastro consta que o senhor obteve um empréstimo para realizar a plantação de cem tarefas de arroz, mas vejo que só tem trinta tarefas plantadas.

        - Pode aí no seu papel, mas eu disse ao seu gerente foi que ia prantá pertin dos cem. – respondeu o agricultor.

        - Mas seus trinta é muito longe de cem, seu Zaqueu. – continuou o fiscal com um sorriso irônico no canto da boca.

       O experiente agricultor, com a sagacidade de sempre, imediatamente retrucou:

      - É nada, meu rapaz. Conte mais eu. Meu vizin Zé Batista prantou trinta tarefa. Meu vizin Ferreira Custodio prantou tombém trinta. Outo vizin Raimundo Cunha prantou mais quarenta. Eu tou ou num tou bem pertin dos cem deles ?



* Tarefa é uma medida de área muito usada no interior nordestino

Colaboração: Aldir Cunha

(imagem Google)

segunda-feira, 16 de maio de 2011

387 - O PREGÃO* DO DEVEDOR



         Cada atividade profissional possui seu vocabulário específico. Na vida forense, por exemplo, costuma-se utilizar palavras e expressões que soam estranhas no ouvido da população.

          Na década de noventa, em Várzea Alegre, pequena cidade do interior cearense, após esgotar todos os meios de cobrança ao seu alcance, o próspero comerciante Elias Frutuoso resolveu ingressar com uma ação judicial contra um insensível devedor.

         No dia da audiência, o comerciante chegou ao fórum no horário marcado e entrou na sala de audiências. Minutos depois, vestindo a formal toga preta, ingressou no recinto o juiz da comarca, que determinou:

        - Vejam se o inadimplente já chegou:

      Elias, atento às ordens do magistrado, imediatamente perguntou:

        - Dotô, quem num chegou?

      - O devedor, senhor Elias. O inadimplente não veio, ainda não respondeu ao pregão* – respondeu educadamente o juiz.

       O comerciante, com seu jeito autêntico, coçou a cabeça e ponderou:

       - Vixe, quer dizer que veaco agora virou inadimplente? Num dá certo não, dotô. Um nome bonito desse pra caba mau pagador...



* pregão também significa o ato de apregoar, de chamar publicamente em porta de auditórios, foruns, etc.

Colaboração: Dirceu Carvalho Feitosa Costa

(imagem Google)

sábado, 14 de maio de 2011

386 - FUTEBOL NO CEDRO (Republicação)





        O time de futebol de Várzea Alegre se preparava para viajar até o vizinho município do Cedro, onde, ainda no final da tarde daquele mesmo dia, as duas seleções protagonizariam um esperado embate. A rivalidade entre os dois pequenos municípios cearenses não se limitava ao esporte, tudo motivava discussão entre os moradores das duas cidades. Os cedrenses se gabavam por ter suas terras cortadas pela estrada de ferro, responsável por impulsionar seu desenvolvimento. Do outro lado, os varzealegrenses respondiam dizendo que pouco adiantava a linha do trem se no Cedro não havia sequer água.
 
         Na efervescência de toda essa rivalidade, os atletas da terra do arroz subiam no velho caminhão que os transportaria até o campo de chão batido da vizinha cidade. Muitos assistiam à saída da equipe de atletas, outros tentavam subir no caminhão para acompanhar o jogo na terra vizinha. Não havia espaço suficiente na carroceria para acomodar a equipe de futebol, a comissão técnica, os dirigentes e os inúmeros torcedores que desejavam ver o clássico regional.
 
         No meio daquela confusão, um conhecido e assumido homossexual de Várzea Alegre, com seus trejeitos afeminados, tentou subir no caminhão. A reação foi imediata. Vários jogadores e torcedores recusaram a presença do diferenciado torcedor. Uns mais afoitos e sem as idéias atuais do politicamente correto empurraram o pobre rapaz e gritaram:

        - Viado não sobe nesse caminhão.
 
       O torcedor pederasta, aborrecido com a inesperada recusa, entristecido com a ação preconceituosa ainda maior naquela época, olhou seriamente para os jogadores, comissão técnica e torcedores, e gritou:
 
         - Eu não vou nesse caminhão, mas aí em cima vão mais dois outros viados.

         Fez-se silêncio tumular entre os presentes. Ninguém, nem mesmo os mais esquentados dos jogadores esboçou qualquer reação. Nenhum outro torcedor quis acompanhar o grupo. Outros não desceram do caminhão temendo que a atitude levantasse suspeita sobre a sua opção sexual. Assim, o veículo deu partida e seguiu na antiga estrada em direção ao vizinho município. No percurso de várias léguas não houve as conversas de costume, como os importantes debates sobre as estratégias para o confronto. Os passageiros se olhavam discretamente procurando pistas dos dois outros referidos pelo homossexual excluído do grupo.
 
          Chegando ao Cedro, a equipe de futebol varzealegrense não repetiu os bons desempenhos dos enfretamentos anteriores. De igual forma, os torcedores e os dirigentes que acompanharam o time não conseguiram elevar o ânimo dos atletas. Logo o escrete vizinho tomou conta da partida e venceu facilmente o clássico. No término do jogo ninguém falou sobre a derrota, não houve qualquer menção aos motivos do fracasso daquela tarde. Afinal, todos reconheceram a impossibilidade de se concentrar na partida. Nos pensamentos dos passageiros do caminhão só havia espaço para descobrir quem seriam os dois outros homossexuais que naquele dia foram disputar ou assistir ao jogo de futebol no Cedro.

 
(imagem Google)

quarta-feira, 11 de maio de 2011

385 - PRAZO DE VALIDADE


        Por muitos anos, Inácio Gonçalves da Costa (Inacin) manteve uma loja de tecidos em Várzea Alegre, sertão cearense. Mas, na década de oitenta, quando o filho primogênito Hermi Cezar voltou de Recife formado em medicina veterinária, o comerciante resolveu mudar de ramo. Em vez da venda de peças de panos, passou a negociar medicamentos veterinários no seu ponto no centro da cidade.

         Certo dia, o produtor rural Itamar Rolim chegou à Farmácia, pediu alguns vermífugos e vacinas para os animais do sítio Maribondo, no vizinho município de Lavras da Mangabeira. Ao receber uma das caixas com os medicamentos, Itamar observou o prazo de validade e alertou:

        - Ei Inacin, esse remédio aqui tá bem pertin de vencer.

        O experiente comerciante deu um trago no seu inseparável cigarro e retrucou:

       - Itamar, tem nada não. Pior é tua conta que já venceu faz é tempo...



Colaboração: Geórgia Maria Batista Sátiro

(imagem Google)

segunda-feira, 9 de maio de 2011

384 - ORELHA QUENTE (Pedra de Clarianã há dois anos)



        No ano de 1968 vivia-se o auge da Jovem Guarda, movimento que mesclava música, comportamento e moda. Mas em resistência à massificação do ritmo iê-iê-iê, os rádios brasileiros tocavam o seguinte xote:

  "Cabra do cabelo grande
  Cinturinha de pilão
  Calça justa bem cintada
  Custeleta bem fechada
  Salto alto, fivelão
  Cabra que usa pulseira
  No pescoço medalhão
  Cabra com esse jeitinho
  No sertão de meu padin
  Cabra assim não tem vez não(…)”

        Os versos bem humorados do Xote dos Cabeludos, do grande compositor varzealegrense José Clementino, imortalizados pelo Rei do Baião, Luiz Gonzaga, traduzem a desconfiança do sertanejo com a aparência pouco convencional dos membros e adeptos da Jovem Guarda.

        Alguns anos depois, quando adolescentes, eu e vários outros primos, entre os quais Hildemburg (Nenê) e Hildemberg (Bega), decidimos usar brincos. Além das dores decorrentes da inflamação nas orelhas, sofremos comentários e críticas em face do à época pouco comum comportamento de jovens do interior cearense.

          Em um fim de tarde estávamos reunidos no Calçadão Antônio Costa, no Bar de Toinha Boa Água, quando nosso tio Francisco da Chagas (Chico Nenê) se aproximou e passou a nos observar. Estranhando seus sobrinhos com adornos enfeitando as orelhas, Chico, com sua voz retumbante e indiscreta sinceridade, comentou:

         - Meus sobrinhos, não se enfeze comigo não, mas se tivesse com vontade de o cu eu não ficaria nesse arrodeio todo não.


(imagem Google)

domingo, 8 de maio de 2011

383 - PRISÃO DE ZABUMBA



        Após acompanhar o cantor e compositor cearense Neo Pi Neo em uma turnê pela região sudeste do Brasil, Antônio José de Souza, músico varzealegrense conhecido como Pelé, apanhou um avião em São Paulo de volta ao Ceará.

        Era a primeira vez que Pelé viajava a bordo de avião. Ao entrar na aeronave ouviu atentamente as orientações da tripulação. Meia hora após a decolagem, as belas comissárias iniciaram o serviço de bordo e distribuíram lanche aos passageiros. O simpático e guloso passageiro pediu dois sanduiches.

        Mal engoliu o último pedaço de pão e tomou o segundo copo de refrigerante, o músico sentiu uma enorme vontade de ir ao banheiro. Mas não sabia como proceder para desatar o cinto de segurança nem mesmo onde ficava o sanitário. Para piorar a situação, como se trafegasse por uma estrada cheia de catabis*, o avião ingressou em uma zona de turbulência e começou a balançar. As aeromoças sumiram e as luzes foram apagadas. Preocupado, suando frio, Pelé sentiu-se obrigado a permanecer imóvel e, com força física e mental, segurar a vontade de esvaziar o intestino.

        Após cerca de duas horas de vôo, o músico finalmente chegou ao aeroporto de Juazeiro do Norte. Nem deu tempo de procurar um banheiro no modesto aeroporto da terra de Padre Cícero. Ainda atordoado, com os ouvidos apitando, imediatamente apanhou uma van para Várzea Alegre.

         No fim da tarde, vencidos os cerca de cem quilômetros de estrada, o músico chegou em casa, na rua São Vicente. A esposa, com alegria, recebeu o marido na porta e foi logo dizendo:

       - Meu fii. Você deve tá com fome. Fez uma viagem grande. Vou logo botar sua janta.

        Pelé arriou a mala no chão, bateu com as mãos na dura barriga como se tocasse em um zabumba, e perguntou:

        - Muié, dá pra temperar o baião de dois com óleo de rícino e magnésio?



Colaboração: Antônio José de Souza (Pelé)

* Ondulação de terreno que provoca solavancos nos veículos

(imagem Google)

sábado, 7 de maio de 2011

382 - O RELÓGIO DO MACHADO



       Em Várzea Alegre, na metade do século passado, Zé de Freitas, conhecido produtor rural do sítio Arapuá, gostava de contar exageradas e impressionantes histórias.

        Certa vez, na boca da noite, em uma debulha de feijão, com os moradores reunidos na calçada da casa grande, o produtor rural, enquanto abria as vagens, narrou um caso daquelas bandas do sertão cearense:

        - Faz uns vinte ano que fui deixar um gado na Boa Sorte. Chegano no Machado*, descia uma cheia grande. Na correria pra atravessar os animal acabei perdeno meu relógio na água. No ano passado, na seca, cruzei o riacho e vi um negócio alumiando no mei da areia. Num era o relógio que caiu lá?

        Um morador, desconfiado, com tom de descrença, falou:

         -Eita, seu Zé, é muita sorte achar o relógio no mesmo canto depois de tanto tempo.

         O agricultor, com a mesma seriedade, completou:

         - Num me admirei de achar não. De admirar foi que o relógio tava funcionano, dano as hora direitin.



* Riacho do Machado - pequeno  mas importante rio de Várzea Alegre; um dos principais afluentes do Rio Salgado.

Colaboração: Antônio Alves da Costa Neto

(imagem Google)

sexta-feira, 6 de maio de 2011

381 - EXPRESSO VALE DO JAGUARIBE



        Há muitos anos Vicente Menezes trabalha como vendedor no Armazém Progresso, conhecida e movimentada loja de tecidos de Várzea Alegre. O simpático comerciário também acumula destacadas participações na presidência do clube recreativo da cidade e na diretoria da tradicional Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro - ESURD.

        Na década de oitenta, após uns sintomas preocupantes, um médico local recomendou que Vicente procurasse um especialista em Fortaleza para avaliar um suposto problema cardíaco.

       Nervoso, temendo um agravamento dos problemas de saúde, o comerciário logo se organizou para viagem e tomou o ônibus em direção à capital. No interior do coletivo da empresa Vale do Jaguaribe sentou-se na poltrona ao lado de dona Mundinha Sátiro, simpática e religiosa senhora da pequena cidade cearense.

       No início do longo trajeto, de mais de quatrocentos quilômetros, os dois passageiros logo travaram uma boa conversa. Vicente adorou a companhia de dona Mundinha, pois o diálogo diminuiu a angústia e preocupação decorrente dos exames cardíacos que faria em Fortaleza.

       Uma hora após a saída, na BR 116, próximo a cidade de Icó, Vicente falou:

      - Dona Mundinha, a gente conversando assim eu nem vou sentir a viagem passar. Bom que falamos outros assuntos e eu esqueço do meu problema no coração.

        - É devera meu fii, passa ligeiro. E já rezei três terços pra você ficar logo bom. – completou a devota varzealegrense.



Colaboração: Vicente Menezes Fiuza

(imagem Google)

quinta-feira, 5 de maio de 2011

380 - GAROTA DO BECO





         No Rio de Janeiro, na década de sessenta, Tom Jobim e Vinicius de Moraes bebiam no Bar do Veloso, quando, observando a passagem da linda jovem Heloisa Pinheiro em direção à praia, compuseram a eterna música Garota de Ipanema.

        No Ceará, em Várzea Alegre, no início da Rua dos Perus, Chico Basil e Antonio Ulisses conversavam e bebiam no Bar de Jonas, quando por ali passou uma bela jovem, caminhando em direção ao Beco de Nacisa. A passagem da garota chamou a atenção de todos, pois, não bastasse a beleza do seu rosto, a moça esbanjava um corpo escultural,  destacado pelo seu colado e curto short jeans.

         Uma magra senhora de meia idade, pobre de curvas, solteirona, que também escutava as divertidas histórias dos inseparáveis Antônio Ulisses e Chico Basil, comentou:

        - Tá vendo que pai num deixa eu vestir uma roupa curta dessa.

       Com um olho só, ainda observando a moça já distante, o ferreiro Chico Basil retrucou:

       - Pra mostrar o que muié? Essas duas bandinha de fava?



Colaboração: Antônio Alves da Costa Neto

(imagem Google)

quarta-feira, 4 de maio de 2011

379 -RIQUEZA ACUMULADA


         Todo ano, a revista americana Forbes divulga a lista dos homens mais ricos do mundo. Na relação sempre aparecem os nomes do mexicano Carlos Slim e dos Americanos Bill Gates e Warren Buffett. Neste ano, o brasileiro Eike Batista figura na oitava posição da lista entre os maiores afortunados do planeta.

        Certa manhã de sábado, na década de oitenta, em Várzea Alegre, modesto sertão cearense, como de costume, o corretor de algodão Antônio Ulisses, o ferreiro Chico Basil, o agricultor Joaquinzin, o manipulador de fantoches Damião dos Bonecos e outros amigos se reuniram em uma animada conversa no Bar de Jonas. No meio da divertida prosa surgiu o assunto riqueza. Como exemplo de homem próspero e endinheirado o corretor citou o seu patrão, o usineiro Inácio Parente.

       O espirituoso ferreiro, após escutar a opinião do amigo, tomou uma dose de cachaça, mordeu um caroço de cajarana e, se referindo ao destacado patrimônio imobiliário do Coronel Dirceu Carvalho,  disse:

       - Antôi Ulisse, é bem facin o caba ser rico. É só eu butá na cabeça que essas casa de seu Dirceu aí da Rua dos Peru são tudo minha e eu num faço nem questão de vender.

 
(imagem Google)

domingo, 1 de maio de 2011

378 - O TRABALHO DE 'PÉ VÉI'



        No Brasil e em vários outros países, o 1º de maio, dia do trabalho, é um feriado marcado por festas, manifestações e atos reivindicatórios. Mas, atualmente, com o enorme crescimento das empresas, o contato entre empregados e empregadores tornou-se muito mais raro. Patrão e trabalhador só se comunicam por email, ofício circular e outros frios instrumentos.

         Em Várzea Alegre, no Sítio Bonizário*, na segunda metade do século passado, uma relação de camaradagem entre patrão e empregado marcou época. Por vários anos, a saudável convivência entre José de Souza Lima(Pé Véi) e o produtor rural Francisco Fiúza de Lima (Fatico) deixou muitas e divertidas histórias.

         Na década de setenta, bem cedo da manhã, Fatico pediu que Pé Véi fosse ao mercado público, na sede do município, comprar um quilo de carne de gado. Só por volta do meio-dia, com Risalva, esposa do patrão, reclamando a chegada do tempero para o almoço, o empregado voltou ao sítio trazendo a carne pendurada em um fio de palha. Ao ver a compra, Fatico reclamou:

       - Pé Véi, eu pedi carne de gado e você trouxe de porco. Você num sabe que Risalva num come carne de porco?

        - Sei sim, seu Fatico. Mas eu como... – Respondeu tranquilamente o empregado rural.



* Bonizário – Aprazível sítio de Várzea Alegre que recebeu o nome em homenagem à capital da Argentina, Buenos Aires.

Colaboraçao: Carlos Leandro da Silva (Carlin de Dalva)