quinta-feira, 30 de julho de 2009

66 - POLTRONA VAZIA





        O espírito de migrante corre na veia do nordestino, especialmente nas do cearense do sertão. Assim, o varzealegrense já nasce acostumado com a idéia de logo após completar a maioridade e obter a carteira profissional (CTPS) buscar oportunidades em outras terras. Como gerações anteriores já trilharam o mesmo caminho, o sertanejo já não se assusta tanto com a idéia da migração.

       Porém, como observado nos versos melancólicos da “Triste Partida”, do inesquecível poeta Patativa do Assaré, não há como evitar sofrimento nesses momentos de adeus.

        Em Várzea Alegre, durante vários anos, os ônibus com destino a São Paulo, lotados de novos migrantes, partiram da Rua Duque de Caxias, em frente à Casa Zé Augusto. Alberto, agenciador da empresa Itapemirim, além de despachar os passageiros e as bagagens, no momento da saída não descuidava do repertório das músicas tocadas em seu estrondoso aparelho de som.

         Os choros e abraços de despedidas eram embalados pelos versos da dupla Jane e Herondy “não se vá, não me abandone por favor, pois sem você vou ficar louco”. Ou, então, na voz marcante de Agnado Timóteo cantando “adeus, pampa mia. Adeus, vou para terras estranhas”.

         Antônio Ulisses, que, em uma manhã de sexta-feira acompanhou aquele sofrido espetáculo, bebendo cerveja no balcão da própria agência-bar, assim que o ônibus partiu, criticou seu amigo:

         - Alberto, você não tem coração. Como é que você toca umas músicas dessas, hôme? Você não chora com essas despedidas não?

        O simpático e irreverente comerciante, antes de sua gargalhada característica, respondia:

         - Antônio Ulisses, deixa de ser besta. Eu choro, choro muito, mas só quando vai duas poltronas vazias do Itapemirim.

(imagem Google)

quarta-feira, 29 de julho de 2009

65 - O CARREGADOR DE PINICO

           Há cinqüenta anos, poucas residências possuíam em seu interior banheiros e, por conseguinte, vasos sanitários. As convenientes suítes eram praticamente desconhecidas naquela época, sobretudo em pequenas cidades do interior cearense, como Várzea Alegre, onde ainda não havia, sequer, a cômoda água encanada.

          O banheiro da casa da Rua Duque de Caxias, como em todas as outras residências, era localizado bem no fundo do quintal. Seu acesso era bastante difícil, principalmente à noite, pois no trajeto era necessário descer vários degraus de escada.

          Rosa Amélia, irmã mais velha, durante o período noturno, após o dia de estafante trabalho, fazia suas necessidades em um penico. Logo pela manhã, encarregava Antônio Ulisses, ainda menino, de jogar os dejetos na distante cintrina, sob a promessa de pagar-lhe alguns tostões.

          Na época, Rosa Amélia, jovem e bonita, trabalhava no estabelecimento comercial de propriedade dos seus primos Toim e Joãozinho Costa, próximo da residência da rua Duque de Caxias, onde atualmente funciona o Armazém Itaúna, de Fabiana Menezes Costa. Antônio Ulisses, como não recebia o pagamento pela desagradável tarefa de transportar o penico e seu conteúdo para a retrete, ia para a porta do estabelecimento comercial de vendas de tecidos e, caminhando na calçada da loja, ameaçava sua irmã, falando:

         — Se não me pagar o que me prometeu, eu digo.

         Com isso, Rosa Amélia, mocinha nova, nervosa e envergonhada, cheia de pudores, sabedora das peraltices e da coragem de seu mano, cuidava logo de quitar tal dívida, sob pena de o irmão trazer a público o melindroso episódio do penico.



* extraído do livro “Conte Essa, Conte Aquela – Histórias de Antônio Ulisses”

sábado, 25 de julho de 2009

64 - PROCURANDO ÔNIBUS NO PALHEIRO




           Saguões de aeroportos e terminais rodoviários testemunham mais gente correndo que pistas de treinamento de velocistas. É impressionante o número de viajantes que chegam atrasados para o embarque.

       Minha querida avó materna Maria Amélia arrumava e fechava as malas uma semana antes da viagem para Várzea Alegre. Não bastasse, mesmo morando a poucos quarteirões de distância, ia para o terminal rodoviário de Fortaleza no mínimo três horas antes da partida do ônibus. Aos críticos de sua exagerada pontualidade, sempre respondia:

          - Você espera pelo ônibus, mas o ônibus não espera por você.

          Já Leônidas Siebra Leite, proprietário da cinqüentenária Casa Zé Augusto, há vários anos agencia em Várzea Alegre a venda de passagens para empresa Itapemirim. Alberto, como popularmente conhecido, por diversas vezes recebeu passageiros reclamando do horário da saída do coletivo para São Paulo.

          Numa dessas oportunidades, um conterrâneo residente na capital paulista, em férias pela Terra dos Contrastes, chegou bastante atrasado e não conseguiu apanhar o ônibus. Aborrecido, o varzealegrense com irreconhecível sotaque, reclamou com o agente:

           - meu, perdi o busão, ele se mandou muito cedo.

          O comerciante Alberto, com sua aguçada e desconcertante espirituosidade, remedando o sotaque do retardado passageiro, retrucou:

        - Qual é, cara? Perde um ônibus daquele tamanho, já pensou se fosse uma agulha?


(imagem Google)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

63 - FAIXA DE PEDESTRE




          A cada dia ruas e avenidas de nossas cidades se tornam mais complicadas para trafegar. Os avanços e melhoramentos da estrutura urbana não conseguem acompanhar o crescimento vertiginoso do número de veículos que ocupam nossas vias.
 
           Embora cause dificuldade a todos, são os que andam a pé que mais sofrem com o crescimento desordenado do trânsito. Com insuficiência de faixas de pedestres e passarelas, virou um tormento atravessar avenidas movimentadas de grandes cidades.

            Francisco Brasil de Oliveira, o ferreiro conhecido como Chico Basil, desde a década de cinqüenta viajou para a grande cidade de São Paulo e acompanhou o desenvolvimento da cidade. Nascido em Lavras da Mangabeira e radicado em Várzea Alegre, pequenas cidades do interior cearense, ele conta que sofreu muitas dificuldades no trânsito de São Paulo.

           Certa vez, Chico Basil buscou atravessar uma grande avenida paulista. Com várias faixas de rolamento, não conseguia sequer por o pé na via, pois inúmeros carros, ônibus e caminhões trafegavam pelo local nas duas mãos de direção. Depois de várias travessias frustradas, assustado com o barulho dos motores e buzinas, o ferreiro viu uma pessoa caminhando apressadamente pela calçada no outro lado da avenida e decidiu pedir ajuda:

          - Ei, como é que atravesso essa avenida? – gritou, desesperadamente, Chico.

          O apressado pedestre, do outro lado da movimentada via, sem dar muita atenção ao migrante cearense, respondeu:

         - Não sei cara, eu já nasci desse lado de cá.


(imagem Google)

quinta-feira, 23 de julho de 2009

62 - A VACA MIUDINHA

          Antônio Ulisses sempre recebeu especial atenção e carinho de todos os seus parentes, sobretudo dos seus irmãos e irmãs.

          Sua irmã Aldair cooperou bastante no período da aquisição de parte do Sítio Santa Rosa de herdeiras de seu avô Dirceu. Sempre que Antônio Ulisses precisou de dinheiro para completar o negócio contou com o apoio irrestrito daquela sua irmã.

         Em busca de capital, vendeu algumas vacas a Aldair. Na ocasião, quando ligava para Fortaleza para tratar do negócio, fazia propaganda do animal, dizendo:

         — Aldair, a vaca é uma beleza, é grande, vistosa, é uma Betinha de Raimundo Alagoano.

         A comparação, para facilitar o negócio, servia para demonstrar o quão vistosa era a vaca, pois Betinha era conhecida por ser uma mulher com altura bem acima da média.

        Depois de algum tempo, passeando por Várzea Alegre, Aldair visitava o sítio Santa Rosa, aproveitando para dar uma olhada na sua nova aquisição.

        Conhecendo bem seu irmão e disposta somente a ajudá-lo, a compradora não era surpreendida quando via que a vaca adquirida era a menor do curral. Dessa vez, da porteira do curral, Antônio Ulisses mudava a comparação, dizendo:

        — Aldair, tá vendo? A vaca é pequenininha, mas é boazinha como Dinha de Saraiva.


* extraído do livro “Conte Essa, Conte Aquela – Histórias de Antônio Ulisses”

terça-feira, 21 de julho de 2009

61 - TAXÍMETRO CONTROLADO




          Atualmente, em grandes cidades como São Paulo, os motoristas profissionais utilizam modernos sistemas eletrônicos na escolha do melhor e mais rápido percurso para alcançar o destino. O navegador GPS ajuda os condutores perdidos nos complicados trânsitos das metrópoles.

          Contudo, mesmo com os novos equipamentos, ainda persiste o temor do viajante em uma cidade desconhecida. Saindo de aeroporto, rodoviária ou estação de trem, há sempre uma desconfiança no trajeto escolhido pelo taxista. Embora a maioria trabalhe honestamente há uma minoria de inescrupulosos que provoca a má reputação desses profissionais.

          Certo dia, o simpático Raimundo Alves de Menezes, varzealegrense conhecido por Mundin do Sapo, contra a vontade de seus familiares, decidiu viajar sozinho até Fortaleza. Chegando ao terminal rodoviário da capital, após cerca de oito horas dentro do ônibus, o caricato matuto apanhou um táxi e entregou ao motorista um papel amassado com o endereço.

         Na evidência de que o passageiro não conhecia a Capital, o motorista decidiu escolher caminhos mais logos para o destino. Porém, já prevenido das artimanhas dos taxistas, Mundin, na sua sabedoria simples de matuto, descobriu uma maneira rápida e barata de chegar ao endereço pretendido. Com seu jeito peculiar de pronunciar as palavras, com ar sério, disse:

        - Seu chofer, o queijo de mantêga que comi na parada do expresso* no Quixadá me deu uma caganeira danada. Ache logo o lugar anotado no papel. Ou vou obrar seu carro todin.


* sinônimo cearense para ônibus.
(imagem Google)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

60 - PEIXADA




          O açude de Orós, construído há cinquenta anos no árido sertão nordestino durante o governo do arrojado presidente Juscelino Kubtscheck, continua como uma das grandes atrações turísticas da região centro-sul cearense.

         No percurso para o enorme reservatório é obrigatório parar nas peixarias da vizinha Lima Campos. Todos os restaurantes do lugar oferecem delicioso almoço com o pagamento em sistema de rodízio.

          Em um desses inesquecíveis passeios de férias, no inicio da década de noventa, meu querido tio materno Paulo Danúbio patrocinou a ida de vários sobrinhos para a terra do famoso cantor Fagner. Depois de algumas divertidas horas no açude, os banhistas, no meio da tarde, com apetite aguçado, foram almoçar em um pequeno restaurante de Lima Campos. O proprietário do humilde comércio foi quem explicou as regras do rodízio:

          - Aqui adulto paga inteira e criança até dez anos paga apenas metade do preço. Pode comer peixe até o bucho quebrar.

          Foi um festival de comida. Peixe para todos os gostos: cozido, frito e assado. Tudo acompanhado com muito baião de dois, farofa e pirão. Em pouco tempo os banhistas se fartaram da sortida refeição. Com uma exceção, pois meu primo Dirceuzin, à época com uns nove anos de idade, continuou apreciando a boa comida. Toda hora, com muita simpatia, pedia algo para o proprietário:

         - Ei, seu Zé, avia, traz mais um pirãozin. Inda tem ova de Cumiratã ?

         Depois de várias idas e vindas à mesa do apetitoso banhista, o atencioso dono do restaurante se dirigiu ao professor Paulo Danúbio e rogou:

         - O senhor se incomoda de pagar inteira para esse gordin? Esse minino me engabelou*, não para de comer. Desse jeito tou lascado. Vai fechar minha peixaria.


*flexão verbal do verbo engabelar, de uso comum entre os cearenses, que significa enganar, iludir.
(imagem Google)

sábado, 18 de julho de 2009

59 - TELEGOLPE





         
         Antes de qualquer conflito doméstico, cabe logo esclarecer que o fato aconteceu quando eu era solteiro e morava em um pequeno apartamento do Bairro Buritizal, em Macapá.

          Em meados da década de noventa recebi uma conta mensal registrando vários telefonemas para países como Guiana, Suriname e outros. Para minha desagradável supresa, o valor da fatura veio quatro vezes maior que o normal.

            Imediatamente vesti o paletó e me dirigi para a loja de atendimento da privatizada TELEAMAPÁ, que à época funcionava na esquina da Rua São José com Avenida General Gurjão, no centro comercial de Macapá. Ao chegar, depois de alguns minutos de espera, fui atendido em um balcão, ao lado de vários outros consumidores.

          A jovem recepcionista, muito educada, perguntou qual o assunto da minha reclamação. Eu, com certa arrogância, fui logo falando:

         - Olhe aqui minha conta. Tem várias ligações internacionais, todas feitas de madrugada. Eu só ligo pro interior do Ceará, pra Várzea Alegre. E nem venham me dizer que outra pessoa fez a ligação que eu moro sozin.

         A jovem, sempre sorridente, comunicou-me que ia verificar o acontecido e passou a examinar a conta em seu terminal de computador. Após cerca de um minuto, levantou o olhar em minha direção e, polidamente, falou:

        - Senhor, esses números são do telesexo. São ligações internacionais porque as empresas foram proibidas de funcionar no Brasil.

        Duas senhoras que também eram atendidas me dirigiram um olhar de inquisidoras. Eu fiquei sem saber o que dizer. Havia esquecido daquelas ligações. Meses antes eu realmente sucumbira. Chegava sozinho em casa e, ao ligar a tevê, sempre aparecia uma bela moça, vestindo roupas sumárias, repetindo insistentemente: ligue, ligue, ligue.

        Vendo que aumentava o número de olhares a me avaliar, tomei a contestada conta das mãos da atendente, e, antes de sair às pressas, sem sequer agradecer, inventei:

         - Agora me lembrei. Foi aquele tarado do meu primo que veio passar uns dias lá em casa.


(imagem Google)

58 - LÍNGUAS DO BRASIL





           Espalhados em um país continental, brasileiros falam português de variadas formas. Mesmo com a imposicão de sotaques pelos meios de comunicação, em cada localidade se preserva o ritmo e a singular maneira de pronunciar as palavras. Contudo, essas diferenças não desagregam o país. Todos se entendem numa só língua, até os mais distantes. Em pouco tempo o Gaúcho do Chuí se comunica facilmente com o Amapaense do Oiapoque.

          Em Macapá, assim como em Belém, na pronúncia peculiar de alguns fonemas, logo que cheguei meu ouvido percebeu certo exagero, um excesso de chiadeira. Parecia panela de pressão fervendo. Bastou ouvir, por exemplo, pessoas dessas capitais informando um número do telefone:

         - Dixque para Treix, doix, doix, doix...

         Porém, como já fui adotado pelo Estado do Amapá desde o início da década de noventa, aqui e ali me flagro dando umas chiadas também. E na mistura com o ritmo carregado e meloso de cearense do cariri, minha fala se torna ainda mais esquisita.

          Desse modo, sempre que retorno à minha terra natal, Várzea alegre, busco policiar o meu sotaque temendo represálias de familiares e amigos. Assim, ainda dentro do ônibus, depois de passar pelo sítio Gamelas, quase chegando à Terra do Arroz, antes de avistar a torre da igreja de São Raimundo, repito baixinho, carregando bem na nossa forma de falar:

          - Titia tem tido muito apetite. Titia não tem hepatite.


(imagem Google)

sexta-feira, 17 de julho de 2009

57 - XERIFE DO SERTÃO






          Meu avô materno Antônio Alves Costa, em meados do século passado, foi nomeado Delegado de Polícia na pacata Várzea Alegre. Naquela época, não se exigia o bacharelado em direito como requisito para o provimento do importante cargo.

           Nada se passava na cidade sem o conhecimento prévio do pequeno destacamento policial. Contudo, as principais questões levadas à autoridade se limitavam a raptos de moças, conflitos de vizinhanças, cobranças de dívida e outras pequenas querelas.

          Certo dia, um nômade vendedor, vindo de longe, sem qualquer referência no local, solicitou uma conversa reservada com o Delegado e foi logo dizendo:

         - Seu Antônio, eu vim pedir sua proteção para vender meus produtos nesta cidade.

          O Delegado, conhecido por seu bom senso e rigorosos princípios morais, com sua voz rouca, logo respondeu:

          - Pode levar seu comércio tranqüilo. Fazendo as coisas direito o senhor não terá nenhum problema.

         Sem esconder a decepção, o estranho vendedor replicou:

        - Ora Seu Delegado, se fosse pra fazer as coisas direito eu não vinha pedir a autorização do Senhor.


Colaboração: André Costa Tanaka

quinta-feira, 16 de julho de 2009

56 - DESCLASSIFICADO





           Para garantir rapidez na venda de um veículo ainda não apareceu nada mais eficaz que o uso das tradicionais páginas de classificados. Foi dessa maneira, através do jornal Diário do Nordeste, que, no final da década de 80, o varzealegrense Antônio Valdemar de Souza, de apelido Balá, resolveu anunciar o seu conservado Ford Del Rey:

          "Vende-se Del Rey ano 81, modelo 82, versão “prata”, único dono, IPVA pago, bem conservado, preço de ocasião, tratar com Balá."

           A propaganda no periódico cearense permitiu o aparecimento de vários interessados na compra do Del Rey. Porém, mesmo elogiando as qualidades do carro, tais compradores não apresentavam proposta nem voltavam para fechar o negócio com o simpático proprietário.

           Um desses interessados, depois de examinar detidamente motor, pneus, pintura, e revestimento dos bancos, e ainda dar uma pequena volta com o carro, disse:

          - Senhor, o Del Rey tá aprumado, mas só tem duas portas. É ruim pra chegar no banco de trás.

         Balá, já meio aborrecido com a dificuldade para passar seu velho carro adiante, em um dos seus conhecidos repentes, retrucou:

        - Hômi, largue de besteira. Os ônibus da Vale do Jaguaribe que faz linha pra Várzea Alegre só tem uma porta, e mesmo assim carrega mais de quarenta passageiros. E, olhe, nunca ninguém reclamou.


Colaboração: Cezar Gregório, conhecido como Cézar de Romildo.
(imagem Google)

segunda-feira, 13 de julho de 2009

55 - CAFÉ NO CRATO


            Era 1953 e Terezinha contava apenas com dez anos de idade. Uma das filhas da numerosa prole do casal Antônio Costa e Maria Amélia, a garota nunca havia deixado as terras da pequena e isolada Várzea Alegre. Até que um dia recebeu o convite de seu avô materno, o industrial Dirceu de Carvalho Pimpim:

         - Terezinha, diga a sua mãe que você vai comigo e Dosa para a festa do centenário do Crato.

         O mês que faltava para a viagem inundou a imaginação da garota. Sem muitas referências, pensou inicialmente que Crato era apenas um sítio ou talvez uma outra pequena localidade com as mesmas limitações de sua humilde terra natal. Mas a intuição dizia que aquele passeio marcaria sua memória para sempre.

         Calçando alpercatas novas compradas por seu avô e trajando vestido especialmente feito por sua avó Madrinha Dosa, Terezinha finalmente seguiu para o Crato na boléia do caminhão misto de Toin Diniz. A menina não precisava falar. Seu silencioso e tímido rosto traduzia a enorme felicidade sentida naquele momento.

         Depois de cerca de quinze léguas de estrada sinuosa, o velho caminhão chegou ao Crato. A curta caminhada da parada da Rua Monsenhor Esmeraldo até à Senador Pompeu, no oitão da Igreja São Vicente, onde iriam se hospedar, já foi suficiente para impressionar a garota. Viu muito mais carros nas vias do que os únicos três que pouco circulavam por Várzea Alegre. A “Princesa do Cariri” estava em festa, pois além dos cem anos de emancipação, também seria retomada a exposição agropecuária após período de interrupção.

         Naquele proveitoso passeio, interessantes novidades surpreenderam os aguçados sentidos da pequena varzealegrense. Além de conhecer o trem, a menina ouviu o barulho do vôo rasante do avião que trazia para as festividades o vice-presidente Café Filho. Na elegante comitiva oficial, recebida pelo prefeito Doutor Teles Cartaxo e pelo governador Raul Barbosa, também vieram outros futuros presidentes, como o comandante da 10ª Região Militar General Castelo Branco e o Ministro do Trabalho João Goulart. Essas e várias outras graduadas autoridades passaram em revista pela rua enfeitada e miraram nos olhos admirados da menina.

          Ao voltar do sonho e desembarcar de volta à sua querida cidade, a menina, orgulhosa, cheia de novidades, ostentando um dourado relógio ganhado do avô, foi logo dizendo para as inúmeras crianças que a aguardavam:

         - Sabe quem eu vi no Crato bem de pertin? O presidente Café filho.
         Uma garota mais velha que ouvia a conversa, em flagrante despeito, resmungou:

        Oxe, besteira. Se danar daqui pro Crato só pra ver isso. Carecia não. Era só comprar uma quarta de café na bodega de seu Zé Augusto.

Colaboração: Terezinha Costa Cavalcante
(imagem Google)

domingo, 12 de julho de 2009

54 - ONDAS DE VIAGRA




           A tapioca representa umas das principais marcas da rica culinária cearense. Café da manhã que se preze servido na “terra de Iracema” não pode prescindir da apetitosa comida típica. Atualmente a apresentação do produto se modernizou em cardápios com outros sabores como côco, queijo, banana e chocolate. Em Várzea Alegre a tradicional tapioca é apreciada misturada com amendoim torrado.

           Cedo do dia, Enedy costuma preparar com carinho as tapiocas para a primeira refeição do seu querido esposo Delfonso. Certa manhã, como o marido perdeu o horário do café, Enedy orientou a empregada que as esquentasse no recém-adquirido forno de microondas.

            A prendada funcionária, no interesse de agradar o patrão, esquentou as tapiocas no moderno forno durante o dobro do tempo recomendado. Limitado pelo uso de dentaduras, sem conseguir mastigar a desidratada iguaria, o espirituoso motorista Delfonso, ainda recuperando-se de uma invasiva cirurgia na próstata, reclamou:

           - Nedy devia colocar o que tenho mole nesse forno pra ver se fica duro que nem essas tapiocas.


* Contribuição: Klébia Fiúza
(imagem Google)



sábado, 11 de julho de 2009

53 - AS LONGAS RETA DA BR

              Noutra ocasião, numa viagem pra Fortaleza, no ônibus da empresa Vale do Jaguaribe, seguiam Antônio Ulisses e Gilson Primo.

        Logo após o embarque, que na época ocorria na Farmácia de Zé de Ginu, onde hoje funciona a União Balas, bombonière de propriedade de Samuel Quereno de Oliveira, os dois foram debulhando conversa e falando da vida alheia. Depois de umas amoladas tesouradas, Gilson disse:

         — Antônio Ulisses, vamos deixar os outros de lado, tá na hora de começar a falar de Irapuan.

         No que o companheiro de viagem acrescentou:

         — Agora não, Gilson, tenha paciência, pra tratar de Irapuan nós temos que esperar as longas retas da BR 116.



* extraído do livro "Conte Essa, Conte Aquela - Histórias de Antônio Ulisses"



sábado, 4 de julho de 2009

52 - SALTOS NO FUTEBOL





             A grande maioria dos comentaristas esportivos aponta a seleção brasileira de futebol da copa do mundo de 1982 na Espanha como uma das melhores de todos os tempos. Daquele escrete canarinho participaram craques como Zico, Falcão, Sócrates, Oscar e Junior, jogadores que escreveram sua história no futebol.

            Depois de mais de vinte anos de espera por um título, o país inteiro sonhou com a conquista do tetracampeonato através do selecionado comandado pelo brilhante técnico Telê Santana.

            A seleção iniciou a competição de maneira arrasadora, vencendo sucessivos jogos e eliminando adversários de peso como a temível Argentina. A cada partida a nação se cobria ainda mais de verde e amarelo.

           Contudo, no dia 5 de julho, em Barcelona, sucumbimos diante da surpreendente seleção italiana. Em dia inspirado do atacante Paolo Rossi, os italianos venceram os brasileiros por três gols a dois.

           Milhões de torcedores brasileiros choraram com a inesperada derrota da seleção. A sensação era de luto, de perda de um título que o mundo já considerava do Brasil.
 
           Na casa da minha querida avó Maria Amélia, mesmo com o final da partida, todos permaneceram anestesiados, sem saber o que dizer ou comentar, apenas ouvindo a voz do famoso locutor de TV Luciano do Vale. Minha avó, que assistira ao jogo sentada em sua cadeira de balanço e de costas para a televisão, buscou justificar a eliminação e consolar os tristes expectadores. Arrotando conhecimento sobre o futebol, a robusta torcedora, vestida em seu “robe” característico, comentou:

          - Também, depois que João do Pulo perdeu a perna eu não acreditava mais nessa seleção.

(imagem Google)


domingo, 28 de junho de 2009

51 - "NÃO SOIS MÁQUINAS! HOMENS É QUE SOIS!"





          O clima semi-árido aumenta bastante as dificuldades e sacrifícios atravessados pelo valente povo do nordeste brasileiro. No entanto, a falta das chuvas não endurece o coração do sertanejo. Ao contrário, dia após dia, suas histórias dão lições de fraternidade, amizade e companheirismo.

           O agricultor Zé de Hemínia foi um desses humildes nordestinos com inesgotável capacidade de colaboração. Todo enterro que passava vindo do distrito do Juazeirin em direção à sede do município de Várzea Alegre, Zé fazia questão de ajudar. E naquela época o corpo era transportado em uma rede segura por um pau e carregada por dois fortes homens.

           Em um dia muito quente do mês de setembro, Zé de Hermínia viu passar um pequeno cortejo trazendo na rede mais um defunto. Sem sequer saber o nome do falecido enrolado ao lençol, logo se prontificou a ajudar. Pôs no ombro uma das pontas do pau e, como eram poucos os ajudantes, não alternou com ninguém o seu lado da rede.

          Depois de cerca de três léguas de penosa caminhada, quando o enterro já ia passando em frente à matriz da Igreja de São Raimundo Nonato, o suado e fatigado Zé de Hermínia perguntou:

         - Pera aí, o defunto não vai entrar na Igreja mode padre Otávio benzer não?

         Com ar de perplexidade, um dos ajudantes do cortejo respondeu:

        - Vixe, Zé, né um defunto que nós tamo carregando não. É uma máquina de costura pra mode seu João Alves consertar.


Colaboração: Elias Frutuoso


sábado, 27 de junho de 2009

50 - QUEM TEM, TEM MEDO




          Por muito tempo seu Lourival Clementino conduziu o único meio de transporte que ligava a pequena Várzea Alegre ao desenvolvido município do Crato. Naquele tempo de péssimas estradas, para chegar à capital do cariri só mesmo como passageiro no caminhão misto de seu Lourival. O filho Pedro Clementino, seguindo o mesmo caminho do correto e responsável pai, herdou a capacidade de dirigir e se tornou um habilidoso e confiável motorista.

           Mas em uma noite de folga do ano de 1966, o jovem e simpático Pedro de Lourival resolveu assistir a um filme de faroeste no cine Odeon de Antão de Pedro Tonheiro, em imóvel situado na antiga Rua Major Joaquim Alves. Tudo corria bem na grande tela quando aconteceu algo inesperado. No momento de um disparo de revólver do filme, Pedro de Lourival sentiu uma forte fisgada em suas costas. Sofrera uma violenta facada e o sangue jorrava sem controle. Ao acender a luz da sala do cinema verificou-se que a agressão não partiu do ator principal nem do vilão do filme, mas de um outro expectador do bang bang, que ainda permanecia com a faca na mão.

           Imediatamente a vítima foi socorrida e encaminhada à recém inaugurada Casa de Saúde São Raimundo Nonato. Já na Delegacia, onde foi levado para os necessários esclarecimentos, o agressor surpreendeu os policiais ao revelar o motivo da violenta atitude. Poucas vezes se viu alguém com tanto medo de ser possuído. É o que se vê das palavras do furioso agressor:

         - Cabo Saraiva, eu furei Pedro de Lourival porque sonhei que ele me comia.


Colaboração: Pedro Clementino, conhecido como Pedro de Lourival.
(imagem Google)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

49 - MENTIR SOCIALMENTE

              Quem nunca mentiu que conte a primeira história.

          O narrador de causos, alimentado pela fecunda imaginação e criatividade, termina misturando ficção com realidade. É raro encontrar um bom contador de histórias que dispense a pequena e inofensiva mentira como reforço e enfeite de suas conversas.

          O servidor público federal e sindicalista Antônio Gerson Bezerra de Moraes, espirituoso primo conhecido por “Piroxa”, sobre um conterrâneo contador de exageros, costuma dizer:

          - Esse sujeito mente tanto que já contou uma história em que no final de uma briga ele próprio morria.

          Não bastando para definir a capacidade criativa do mentiroso, “Piroxa” ainda reforça:

        - Nunca vi igual. Antes de começar a falar ele já aprendeu a mentir.

domingo, 21 de junho de 2009

48 - REMÉDIO SÓ COM RECEITA




          Nascido no pequeno distrito de São José, município cearense de Lavras da Mangabeira, Manoel Gonçalves de Lemos se formou em medicina na cidade de Salvador em 1945. Com o dificultoso diploma na mão, decidiu clinicar em Várzea Alegre, bem próximo de sua terra natal.

            Por mais de quatro décadas doutor Lemos exerceu sua atividade na Terra do Arroz e localidades vizinhas. Na época eram raros os profissionais de saúde. Nem se imaginava o atual programa Saúde da Família, com visitas rotineiras de equipes médicas às residências. No meio do século passado, para atender pacientes nas regiões mais distantes, os deslocamentos eram realizados no lombo do cavalo.

            Certo dia, no final da tarde de um domingo, o médico e poeta passava por uma região isolada da zona rural quando foi chamado para atender um cidadão que sofria no fundo de uma rede com fortes dores. Naquele dia, não realizava atendimento, por isso Doutor Lemos fora apanhado sem seus instrumentos normais de trabalho, inclusive sem o bloco de receitas.

           Após examinar o doente, para anotar o nome dos remédios e a indicação das doses e horário para aplicação, o médico pediu aos proprietários da humilde casa um lápis e um pedaço de papel. Como não foram encontrados esses objetos, o médico apanhou um pedaço de carvão no fogão à lenha e anotou os nomes dos medicamentos e a posologia na face interna da janela de cedro da residência.

           Antes de sair, o médico orientou o dono da casa a passar para um papel as anotações e providenciar com urgência a aquisição dos medicamentos.

           Logo cedo do dia seguinte, na sede do Município de Várzea Alegre, na sua conhecida Farmácia Confiança, o comerciante João Pimpim se surpreendeu com a chegada de um cliente trazendo uma grande janela na cabeça.

          - O senhor tem os remédio dessa receita, seu João Pimpim? – perguntou o suado cliente apontando para a pesada janela já largada sobre o balcão da farmácia.


Colaboração: Hudson Batista Rolim
(imagemGoogle)

sábado, 20 de junho de 2009

47 - CUIDANDO DA SAÚDE




           O exame preventivo de câncer de próstata trata-se da principal ferramenta na busca pela cura da doença. O toque retal, exame clínico realizado por médico urologista, serve para monitorar o aparecimento de nódulos suspeitos.

           Porém, mesmo as louváveis campanhas de esclarecimento do exame não afastam as brincadeiras e as piadas que afetam os homens com mais de quarenta anos. A partir dessa faixa etária, são alvos de comentários jocosos, o que aumenta o receio da realização do imprescindível preventivo.

           Certo dia, no período de férias, os amigos Antônio Ulisses, João Valder e Irapuan Costa combinaram um encontro no conhecido bar de Toinha Boa Água, no Calçadão Antonio Costa. O trio não se reunia há algum tempo pois Irapuan morava na capital cearense e Valder, um pouco mais longe, no Estado da Bahia. Matando a saudade com alegria, os amigos rememoram as histórias da juventude vividas intensamente em Várzea Alegre. Lembraram-se dos antigos carnavais, dos banhos de açude e das namoradas.

          No meio da divertida conversa, após consumirem bastante cerveja, o engenheiro Irapuan Costa, que também já rompera a idade de cinqüenta anos, falou da necessidade de cuidar da saúde, citando os regulares check ups, especialmente o exame de próstata.

         Antônio Ulisses, após os conselhos do querido primo, fingindo seriedade, gesticulando como se dirigisse um carro, falou:

         - Vou dar um conselho a você, Puan. Tenha medo não. Quando for fazer esse exame, vá logo
entrando no hospital de marcha ré.

 Colaboração: João Valder Saraiva de Carvalho
(imagem Google)