sábado, 19 de abril de 2025

992 - A COBRANÇA DOS SAPATOS

 


Eu sou de origem comercial. Desde criança, no sertão cearense, acompanho sucessivas gerações de familiares trabalhando em bodegas, armazéns, sapatarias, padarias, farmácias, boutiques, papelarias, bares e outras atividades de venda no varejo.


E não há como realizar o comércio sem a arriscada venda a prazo. Por isso ouvi tantas histórias de cobranças mal sucedidas e de perdas substanciais por conta da falta de pagamento de alguns mal intencionados clientes. Para meus parentes, agir como velhaco, deixando de honrar os compromissos, trata-se de um dos maiores defeitos do ser humano, praticamente um pecado capital. 


Numa dessas situações,  um conhecido figurão da nossa cidade natal comprou em uma modesta sapataria, a prazo, um par de sapatos de couro legítimo e de sola reforçada. Propositadamente, se esqueceu de pagar, não quitou sequer a primeira das várias parcelas do caro calçado adquirido.


Passados alguns meses, em um evento festivo da pequena cidade, a dona do comércio encontrou o caloteiro muito bem vestido e usando os lustrosos sapatos. Com certa descrição, sem afrontar os direitos do consumidor, a dedicada comerciante abordou o mau pagador, dizendo:


- É danado!! Esses sapato vai se acabar nos teu pé e eu não vou te cobrar…


(Imagem Google)

Colaboração: Carlos Leandro da Silva (Carlin de Dalva)

quarta-feira, 16 de abril de 2025

991 - O VENDEDOR DE SUCESSO


Atualmente, os livros, os “influencers” e os “sites” nos bombardeiam com ensinamentos sobre como se tornar um vendedor de sucesso, recomendando várias lições entre as quais a busca pelo pleno conhecimento do produto oferecido e a boa comunicação com o cliente.


Em meados  da década de 1970, Antônio Nogueira, oriundo do Ceará, após passagem por Santarém-PA, iniciou uma atividade comercial no centro de Macapá. Na pequena baiúca, conhecida como Casa Chama, o simpático comerciante vendia diversos produtos.


Certo dia, um cliente da região do Matapi, área rural de Macapá, tomando algumas doses de cachaça no balcão da mercearia, contava sobre sua falta de sorte com as mulheres. Para afogar as mágoas, o conversador cliente pediu ao bodegueiro um pouco mais de aguardente:


- Antônio, bote mais uma dose de Pitu pra mim …


Quando o baiuqueiro retirou uma nova garrafa de cachaça da empoeirada prateleira, o atento cliente observou:


- Mano, olha isso aí pregado na parede. Tem uma lagartixa morta aí. Tá negociando com lagartixa também, Antônio ?


O baiuqueiro não frequentou os bancos escolares pois trabalhou desde a infância para ajudar na sobrevivência da sua grande família. Na vida dura e sofrida do sertão nordestino, desde cedo aprendeu a não perder uma oportunidade de negócio:


- Meu amigo, aqui tudo é pra vender. Eu que escondi essa briba* aí. Pense numa coisa boa pra atrair muié. Se você levar pra sua casa nunca mais vai sentir falta de muié…


O cliente imediatamente se interessou pelo pequeno réptil. Pôs preço no animal morto e o levou para sua casa junto com outras compras. Semanas depois, o cliente voltou à bodega, ocasião em que o comerciante indagou:


- E aí ? A “briba” deu sorte ? Muita muié lá pelas banda do Matapi ?


Após engolir uma dose dupla de cachaça, o cliente, encostou-se ao balcão,  e, meio cabisbaixo, respondeu:


- Nem te digo, Antônio Nogueira.  Mulher mesmo não apareceu nenhuma, mas cobrador choveu na minha porta…



(Imagem Google )


*termo usado no Ceará  para denominar a pequena lagartixa.


Colaboração: Eliza Freitas da Silva 


terça-feira, 25 de março de 2025

990 - 181 ANOS DO PADRE CÍCERO


Em gozo de férias pelo meu Ceará, sempre reservo alguns dias da viagem para curtir a progressista Juazeiro do Norte, cidade ao sul do Estado, onde minha primogênita estuda e também cultivo diversas amizades.


No último domingo, nesta passagem pela Metrópole do Cariri Cearense, ganhei a oportunidade  de acompanhar dezenas de atletas da equipe Loucos Por Corrida de Várzea Alegre na tradicional Meia Maratona do Padre Cícero, prova que faz parte da vasta programação em festejo ao aniversário do famoso e adorado patriarca do nordeste brasileiro. Após a difícil competição, a entusiasmada equipe de atletas varzealegrenses voltou para casa com a bagagem repleta de medalhas e troféus. 


Na segunda, 23 março, dia maior, no fim da tarde, comemorando os 181 anos de nascimento de Padre Cícero, pelas ruas estreitas do centro da cidade, acompanhei a Procissão das Flores, que, além dos inúmeros romeiros, contou com a destacada participação de grupos de reinados, escoteiros, banda cabaçal, bandas de música e de fanfarra.


A festa de aniversário continuou à noite no largo da sagrada Capela do Socorro, onde o “Padin Ciço” se encontra sepultado. No grande palco, além da concorrida cerimônia religiosa, vários artistas se apresentaram, entre os quais o talentoso cantor e sanfoneiro juazeirense Fabio Carneirinho. Milhares de devotos preencheram cada lugar da enorme praça,  os mesmos que há muito tempo santificaram o Padre Cicero, bem antes do lento processo de beatificação que ainda se arrasta pelos corredores do burocrático Vaticano.


No intervalo dos shows, caminhando por aquele grande Largo do Socorro, afastei-me um pouco e sentei-me para descansar em um banco ao lado da estátua de Joaquim dos Santos Rodrigues, conhecido como Seu Lunga, poeta e comerciante que acompanhou diretamente o crescimento da cidade. Ali, na companhia daquela outra grande e icônica figura do Cariri Cearense, assistindo ao intenso movimento de pequenos vendedores, romeiros e visitantes, pensei: 


Dos inúmeros milagres do Padre Cícero, um dos mais importantes e jamais contestado trata-se da própria Juazeiro do Norte. Pois, em  100 anos, de uma simples vila de casas pertencente ao município do Crato, com a força e liderança do grande sacerdote, Juazeiro se transformou na maior e mais pujante cidade da região.


(Imagem Arievaldo Viana)

terça-feira, 18 de março de 2025

989 - DA SERRA DO GRAVIÉ AO MACIÇO DO BATURITÉ


Neste mês de março de 2025, reunimos novamente um pequeno grupo de parentes e amigos para mais uma rápida e divertida viagem.

Desta vez, partimos da Serra do Gravié, em Várzea Alegre, no centro-sul do Ceará, para o Maciço de Baturité, interessante região do nosso rico e diversificado Estado nordestino.


Chegamos ao Maciço pela cidade de Baturité, onde visitamos a histórica estação ferroviária, destino da primeira estrada de ferro do Ceará. Hoje, infelizmente, o importante meio de transporte se encontra desativado,  mas, por décadas, transportou passageiros e produtos agrícolas para Fortaleza, Capital do Estado. 


Em seguida, iniciamos a subida da serra, parando no Mosteiro dos Jesuítas, imponente construção erguida em um monte no início do século passado, com linda e ampla visão para a movimentada cidade de Baturité. 


Na continuação da subida da Serra, em meio a rica e verdejante floresta de mata atlântica, conhecemos lindas quedas d’águas, entre as quais a impressionante Cachoeira do Perigo, a maior da região, com o precioso líquido caindo a uma altura de 84 metros.


Nos hospedamos na charmosa Guaramiranga, conhecida como “Suíça Cearense”, com clima ameno, lagos e montanhas que remetem àquele pequeno país do continente europeu. 


No florido Município de Pacoti, apreciamos o precioso café do sítio São Luiz, sob as copas das frondosas árvores plantadas em volta do belíssimo e centenário casarão, sede da bem cuidada fazenda.


Em Mulungu, além de conhecer o Sítio São Roque, produtor do famoso e exportado café sombreado, subimos as escadarias para acessar a estátua do flechado São Sebastião, localizada no Sítio Bela Vista. De lá, como o próprio nome indica, apreciamos mais uma das fascinantes paisagens da Serra do Baturité.


De volta a Guaramiranga, escalamos, de carro, o Pico Alto, a quase mil metros de altura, um dos maiores do Ceará, onde desfrutamos um delicioso chocolate quente para amenizar o frio serrano daquele fim de tarde.


O circuito turístico pelos municípios do Maciço nos encantou, mas, como sempre, o sucesso da nossa viagem de três dias se deu por conta do entrosamento da turma, do bom papo e das hilariantes histórias contadas pelo querido tio e professor aposentado Paulo Danúbio. 


Em um desses momentos de descontração, entre muitos casos impublicáveis, o experiente professor, ao ver uma  burrinha subir uma das íngremes ladeiras da serra, nos contou que a cena trouxe à memória sua primeira e ardente paixão, havida na época em que, ainda adolescente, estudara no colégio agrícola de Lavras da Mangabeira. Naquele tempo, há exatos 57 anos, o inocente aluno se apaixonara por uma experiente jumenta que pastava ao redor do tradicional colégio interno do sertão cearense.


(Desenho de Inguerson Lima da Igreja Matriz de Baturité)




quarta-feira, 12 de março de 2025

988 - O SOSSEGO DO BECO DA LIBERDADE



Ao longo do tempo, poucas situações abalaram a tranquilidade da antiga Rua São Raimundo, conhecida também como Beco da Liberdade, situada na área central da cidade cearense de Várzea Alegre.

Nem a perturbação causada pelos modificados escapamentos de motocicletas renderam tanta especulação e comentários como  um forte ruído provocado por um visitante inusitado.


Há algumas semanas, os poucos e antigos habitantes da bucólica rua buscam descobrir de onde parte um estridente e perturbador barulho.


Na intensa mobilização da vizinhança, alguns moradores defendem a necessidade de denunciar o inconveniente indivíduo às autoridades competentes. Pois o som parece mudar de lugar a cada momento, e, após pequenos intervalos de silêncio, volta a perturbar.


Um dos moradores da acolhedora ruela, Maurício Bezerra, corretor de seguros, também incomodado com o recorrente som, reclamou:


- Meu querido, eu já procurei esse barulho em todo lugar. Quando tou dentro de casa, parece vir de fora. Quando saio de casa, o barulho vem de dentro. Vou para um lado da calçada escuto ele no outro…


Até agora, sabe-se apenas que o causador do barulho é um teimoso grilo que estridula insistentemente, especialmente no cair da noite, cortando o costumeiro silêncio do pacato Beco da Liberdade.


(Imagem Google)



quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

987 - OS ÓCULOS DO CHICO TERRA



A vida me presenteou e continua me abençoando com muitos amigos e amigas. Mas, infelizmente, aqui e ali, o nosso plantel de amizades sofre sérios desfalques.

Nos últimos tempos,  dois queridos amigos  de Macapá partiram definitivamente para o plano superior: Francisco Almeida, conhecido como “Chico Terra” e Suanise Alves Pereira, tratado por todos como “Seu Anízio”.


E o melhor remédio para amenizar a permanente saudade dos amigos é relembrar os bons momentos da rica convivência com essas pessoas especiais. 


Certa vez, o fotógrafo, músico e jornalista “Chico Terra” sofreu um acidente doméstico que o obrigou a permanecer algumas semanas internado no hospital de emergências à espera de uma cirurgia ortopédica. Nesse período, Chico me pediu para conseguir um novo óculos de grau para ele.


Imediatamente, busquei o amigo Anízio, proprietário de uma pequena venda de peças e acessórios para óculos, localizada na Alameda Serrano, no centro comercial de Macapá. Logo ao chegar ao  movimentado estabelecimento, contei a situação ao experiente técnico ótico:


- Seu Anízio, sei que o correto seria procurar um oftalmologista. Mas um amigo meu está internado no hospital e precisa de um óculos com urgência. Ele não tem a receita mas sabe o grau. Dá certo fazer os óculos dele ?


O velho Anízio, da mesa em que atendia os inúmeros clientes, com sua inseparável lupa na mão, levantou a cabeça, e, na sua rabugice cômica,  esbanjando sinceridade, lançou mais um dos seus repentes:


- Dá pra fazer sim. Mas se ele não enxergar o problema é dele.


(Imagem Google)



segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

986 - DEUS GREGO


A busca pela beleza física vem de longe, certamente desde o surgimento do mundo. O culto ao belo, presente em diversas culturas, possui raízes na mitologia, com profundas discussões filosóficas na Antiguidade Clássica. E no saber popular, empírico, passado de gerações a gerações, também há remédios para essa recorrente angústia humana.

No último domingo, no intervalo de provas de ciclismo amapaense, em uma prazerosa e divertida conversa,  o amigo e esportista Valdeci Nunes nos confidenciou que, quando criança, sofria com sua aparência física. 

Percebendo a chateação e o inconformismo do pequeno filho, a amorosa mãe do ciclista Valdeci buscou ajudá-lo:

- Meu pequenozin, pra você ficar mais bonito, se esconda atrás da porta, mastigando “cabeloro” cozido.  

Como os antigos gregos, que realizavam rituais e apresentavam oferendas à deusa Afrodite, o menino Valdeci, por diversas vezes, escondeu-se por trás da porta em madeira de sua modesta casa, mastigando “cabeloro”, duro pedaço da carne do boi, extraído do tendão que se estende da cabeça às vértebras do animal.

Valdeci finalizou nossa resenha dominical falando que desconfia que a simpatia não funcionara completamente. Mas, com certeza, sempre que mastigava “cabeloro” atrás da porta, sua autoestima melhorava, saindo, em seguida, pelas ruas do município portuário de Santana, no Amapá, de peito estufado, olhar firme e andando na maior boçalidade, sentindo-se mais bonito do que qualquer Deus grego ou romano.

Colaboraçao: Valdeci Nunes

(Imagem Google)