domingo, 30 de setembro de 2012

658 - CAÇADA DE LAGARTIXA




Certa manhã, em meados da década de setenta, um grupo de adolescentes, armados com baladeiras, caçava em um terreno rural próximo a sede do município de Várzea Alegre. Após algumas horas caminhando cuidadosamente pela caatinga, a caçada não havia rendido nada.

O longo período de estiagem  provocara o desparecimento das pequenas aves e dos roedores do sertão. Os meninos encontraram apenas algumas lagartixas e calangos que saíam do meio das pedras e macambiras - plantas espinhosas comuns na região. 

 De repente, ouviram um barulho estranho atrás de uma moita de mufumbo*. Parecia bicho grande. As pisadas eram fortes. Os garotos, segurando com uma mão a pequena forquilha e com outra esticando as tiras do estilingue, municiados com pedras, aproximaram-se com cuidado para não espantar a caça.

Porém, ao afastar as folhas do arbusto,  os pequenos caçadores se surpreenderam. Em vez do esperado alvo, encontraram um conhecido rapaz, seminu, buscando um contato íntimo com uma burra. Ao ver que fora flagrado pelos garotos, o jovem, de pé, com as calças arriadas, tentou negar o evidente relacionamento amoroso, justificando:

- Tou aqui aguniado pra defecar e essa burra não deixa…

* arbusto comum no sertão

Colaboração: Laece Oliveira

(imagem Google)

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

657 - O PRIMEIRO CHOPE (Pedra de Clarianã há dois anos)




           Em Várzea Alegre, na barbearia de Vicente Cesário, além de cortar o cabelo e tirar a barba, o cliente também tomava uma cerveja gelada. Por muitos anos, o estabelecimento situado na antiga Rua Major Joaquim Alves serviu como animado ponto de encontro da pequena cidade do interior cearense.

          Na década de 1970, Francisco levou o pai Vicente para conhecer Recife. Logo ao chegar à bela e cultural capital pernambucana, o velho barbeiro foi levado a um concorrido bar e restaurante na famosa praia de Boa Viagem.

          Mal se acomodaram no sofisticado bar, Francisco falou:

          - Pai, agora você vai beber algo que não tem em Várzea Alegre. Garçom, traga dois chopes, por favor.

          Depois de vários chopes servidos, Francisco olhou para o turista do sertão e perguntou:

           - E aí, pai, o que achando do chope? Gostou?

         Depois de mais um gole, o espirituoso barbeiro respondeu:

           - Demais bom! Pode mandar encher as canecas de novo. É o bicho mais parecido com cerveja que já bebi.



Colaboração: Ricardo Batista

(imagem Google)

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

656 - A SANGRIA DA CAIXA D'ÁGUA




Em uma rápida visita a Porto Velho, capital do promissor Estado de Rondônia, reservei um tempo para conhecer alguns lugares marcantes da cidade. Nas margens do grandioso rio, vi a velha locomotiva da ferrovia Madeira-Mamoré. Ali perto também encontrei as três caixas d’água, um dos símbolos cultuados pelo Município.

Vendo os centenários reservatórios rondonenses, lembrei-me da infância e da enorme caixa d’água de Várzea Alegre, sertão cearense, construída no Alto da Prefeitura, bem próximo à minha residência.

Na década de setenta, quando a caixa enchia e sangrava, causava enorme movimento entre moradores das proximidades. Enquanto as mulheres aproveitavam pra guardar um pouco do líquido precioso que vazava, carregando para suas casas latas cheias d´água na cabeça, meninos e meninas tomavam banho e se divertiam.

Pena que a velha e alta caixa d’água funcionou por pouco tempo e não mais embala as brincadeiras das crianças nem enchem os potes e reservatórios das casas. Mas eu, ainda hoje, ouço o estrondoso barulho da água caindo e as palavras dos meus amigos de infância gritando da calçada:

- Rumbora, Flavin. Corrre pra gente espiá a caixa d´água emborrotano*.

* esborrotar, segundo o dicionário informal, é usado na acepção popular de transbordar, isto é, verter um líquido sobre as bordas de um recipiente quando muito cheio, também tem o significado de derramar.

(imagem Google)

domingo, 23 de setembro de 2012

655 - A BELINA DE LUIZ SILVINO




Nos dias atuais, a maioria dos veículos trazem o ar-condicionado como equipamento de série. Até mesmo alguns tratores e máquinas agrícolas saem de fábrica com o cômodo acessório.

No Norte e Nordeste, o aparelho veicular caiu no gosto de todos e passou a ser usado frequentemente para aliviar o forte calor que assola aquelas regiões brasileiras o ano todo.

No final do século passado, meu querido pai, Luiz Cavalcante, também conhecido como Luiz Silvino, adquiriu pela primeira vez um carro com o confortável equipamento. Tratava-se de uma belina II, já usada, automóvel da montadora americana Ford.

Estreiamos a nova aquisição com uma pequena viagem de Várzea Alegre ao Iguatu, quente município cearense localizado às margens do Rio Jaguaribe.  Na cidade, por volta do meio-dia, após algumas compras no movimentado centro comercial, sentindo um calor de quase quarenta graus e desejando curtir a confortável novidade, sugeri:

        - Papai, bora ligar o ar-condicionado. Tá quente demais aqui no Iguatu!!!!
     
     Meu velho pai, bodegueiro econômico e controlado, imaginando um gasto extra de combustível para girar o moderno acessório, justificou:
      
   - Meu fii, esse ar-condicionado cansa muito o motô. É melhor abrir o quebra-vento…


(imagem Google)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

654 - A MORTE DA DONA DO CAFÉ (Pedra de Clarianã há dois anos)





          Na segunda metade do século passado, na cidade de Farias Brito, a obesa Maria do Piquiá mantinha um café bastante frequentado. Naquela época, no interior do Ceará, estabelecimentos como esse ofereciam aos clientes os serviços semelhantes aos das atuais lanchonetes. E o concorrido café 
servia os melhores bolos, pães-de-ló e doces da pequena cidade do cariri cearense.

         Tudo transcorria bem com o comércio,  até que um dia Maria do Piquiá apresentou um quadro grave de doença e foi levada às pressas para um hospital do Crato. A cidade de Farias Brito ficou ansiosa por informações. Em menos de quarenta e oito horas chegou da cidade vizinha a notícia que muitos temiam. A dona do café morrera.

         As providências para o velório e o enterro foram rapidamente tomadas pelos amigos e fregueses da falecida. As coroas de flores e velas, encomendadas. As carpideiras, com véus e vestidos pretos, chegaram cedo à casa da comerciante para chorar sua morte e puxar rezas e cânticos. 

         Quando, no final da tarde, o carro trazendo o corpo chegou a Farias Brito já havia uma multidão em frente à casa de Maria do Piquiá. Em sinal de sentimento e pesar, os homens tiraram o chapéu de palha da cabeça para receber o defunto. A porta do veículo foi aberta e de dentro saiu uma gorda senhora. Espantada, a mulher não entendia a razão de tanta gente em frente à sua residência. O povo ali presente se surpreendeu mais ainda. O alvoroço foi grande. As crianças saíram correndo. No meio delas, uma pequena garota gritava:

       - Maria do Piquiá enviviceu. Maria do Piquiá enviviceu...



Colaboração: Vilani Alencar

(imagem Google)

domingo, 16 de setembro de 2012

653 - SOLTANDO AS TIRAS




Lembro que, na década de setenta, em Várzea Alegre, sertão cearense, meu querido pai, Luiz Cavalcante, após um dia de intenso trabalho na bodega, ao chegar em casa sempre pedia a um de nós:

- Meu fii, pegue minha chinela japonesa*...

O simples e confortável calçado era o prêmio que seus pés recebiam depois de várias horas de trabalho duro, afinal, em sua longa jornada, o bodegueiro não sentava um só momento.

Hoje vejo que a velha e modesta chinela deixou o canto escuro do banheiro onde era guardada lá em casa e passou a frequentar lugares refinados como shoopings, boites e restaurantes. Meu velho pai continua na sua bodega em Várzea Alegre, foram as chinelas Havaianas, com enorme sucesso e incrível ascensão social, que ganharam o mundo.

Meses atrás visitava meu tio José Cavalcante Cassundé, Zé do Norte, em sua sortida sapataria de Várzea Alegre, quando me espantei com o pedido de um cliente:

- Seu Zé do Norte, minha zapragata* currulepo arrancou o biloto, aqui vende as correa?

Maior espanto eu senti quando, em tempos de sucesso das alpargatas Havaianas, meu tio, comerciante há décadas, confirmou a oferta avulsa das tiras. Falando alto, como de hábito, se dirigiu a uma das suas vendedoras:

- Ei minha fia, pegue aí uma correa de japonesa. E só um real o par...


* corruptela de alpargata, tipo de calçado usado pelos cangaceiros, muito usada no Nordeste.  Também conhecida por alpercata, passou a nominar as atuais chinelas de dedo.

* as chinelas japonesas eram sandálias de borracha usadas pelas classes econômicas mais baixas, principalmente para serviços domésticos e trabalho na construção civil.

(imagem Google)