quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

299 - FALANDO COM O ALÉM




        O ditado ensina que de médico e louco todo mundo tem um pouco. Mas em Várzea Alegre, sertão cearense, houve certo exagero e desequilíbrio na aplicação dessa sentença popular. Em todos nós varzealegrenses há muito mais insanidade do que conhecimentos médicos.

         Certo dia, no aprazível sítio Lagoa das Panelas, a agricultora Aparecida abordou o eletricista Luiz Félix de Souza, conhecido como Miá, e disse:

         - Eu posso fazer uma pergunta ao sinhô?

       - Pode sim – respondeu educadamente o eletricista.

        A lavradora, de pensamentos pouco normais, fez a pergunta que deixou Miá atordoado:

       - Quem morreu foi o sinhô ou seu irmão?


(imagem Google)

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

298 - TEIMOSIA FAMILIAR



         Em Várzea Alegre, interior cearense, duas velhas e conhecidas irmãs teimavam sobre tudo em suas conversas. Nenhum assunto escapava dos seus freqüentes e discordantes bate papos. Exageradamente apegadas às suas idéias, divergiam do passado, presente e até mesmo dos acontecimentos futuros.

         Certo final de tarde, as duas conversavam no oitão da igreja matriz de São Raimundo Nonato quando passou um pequeno enterro. Vendo o pouco concorrido funeral, travaram o seguinte diálogo:

         - Irmã, no meu velório terá mais gente que no seu.

         - É devera... Vou concordar com você dessa vez.

        - Eita. Sabia que um dia você num teimaria comigo. Mas me diga por que vai ter mais gente no meu enterro do que no seu?

        - Porque no meu você não vai tá mais aqui. Já terá “dobrado a esquina de Zé Bitu”.



* expressão usada em Várzea Alegre que significa tomar o rumo do cemitério.

(imagem Google)

297 - CRIANDO ASAS




         Todo fim de ano, no período de festas, passageiros lotam os aeroportos e rodoviárias do mundo inteiro. Depois de muita ansiedade, milhões de pessoas finalmente realizam as suas planejadas viagens.

          No final da década de 90, em Arrojado, distrito de Lavras da Mangabeira, a professora aposentada Jacira, aproveitando a ampliação do transporte aéreo, convidou o marido para visitar parentes em São Paulo.

          Vicente, velho agricultor, acostumado com a vida tranquila do sertão cearense, não gostava de sair do seu pequeno distrito. Mesmo conhecendo o espírito acomodado do marido, a esposa insistiu:

        - Vicente, a viagem de avião é um pulo. A gente voa do Juazeiro de Padre Cícero e chega ligeiro em São Paulo.

       O experiente agricultor, sentado no banco de madeira, limpando as unhas com a ponta de uma faca, justificou:

       - Jacira, eu num aprendi nem nadar, avali* voar.


*vocábulo cearês que significa imagine, quanto mais...

Colaboração: Antônia Vilani Alencar

sábado, 25 de dezembro de 2010

295 - FOGO NA ROÇA





         A tradição de raptar a pretendente remonta às origens do casamento. O violento costume durou até poucas décadas atrás, principalmente no interior nordestino, onde as regras rígidas dificultavam o início do relacionamento.

        Em Lavras da Mangabeira, sertão cearense, no início da década de setenta, um velho agricultor apanhava algodão na roça, quando sua esposa surgiu, assustada, com as mãos na cabeça, e dizendo:

       - Pelo amor de Deus. Você não sabe o que aconteceu, hômi? Nossa fia mais véia fugiu com o namorado. Os dois foram de cavalo pras bandas do Cedro.

       O pai não se surpreendeu pois a filha de quase trinta anos já namorava há tempo com o tímido rapaz. Com tranquilidade, continuando a catar o algodão do pé e colocar em um saco, o experiente e sábio agricultor disse:

       - Muié, agora tá sem jeito. É que nem broca* na roça, depois que risca o fosco** não tem mais quem ataie o fogo.

* broca é a prática comum no sertão de derrubada das matas na estação seca para posterior queimada como preparação do plantio.

** redução para fósforo

Colaboração: Maria de Lourdes Souza

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

294 - TOCANDO A PANELA




         Zé de Mestre Chagas há muitos anos participa da banda de música de Várzea Alegre. Como seu falecido pai, ele tem a cara dos dobrados tocados em eventos da pequena cidade cearense, especialmente nas salvas da concorrida festa de São de Raimundo.

         Anos atrás, ainda solteiro, Zé vivia assediado por sua namorada Adelina, que insistia em casar. Ciente que ainda não possuía condições financeiras para prover as despesas da casa, Zé resistia às súplicas da amada e justificava:

         - Adelina, se a gente casa nos vamo morrer de fome...

         Mas a romântica namorada, sonhando com o matrimônio, insistia:

         - Zé, mas só d’eu olhar pra você eu me alimento.

         Finalmente, o músico consentiu e casou com Adelina. Apenas três dias após as núpcias, sentido de perto a dificuldade financeira dos que vivem da música, a esposa reclamou:

        - Zé, o que vamos comer, hoje? Eu tou morrendo de fome...

        Lembrando das juras de amor da época do namoro, o marido retrucou com ironia:

        - Mas, muié, você não dizia que só de me ver se alimentava?

        - É Zé, mas a fome tão grande que num tou mais nem vendo você.


Colaboração: Klébia Fiúza

(imagem Google)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

293 - CATALUNHA





        Lindalva, uma potiguar que em meados do século passado se mudou para Macapá com a família, certo dia, após sentir umas tonturas, resolveu se consultar com o médico Paulo Carvalho.

        Durante a avaliação clínica, a senhora, típica nordestina, não parou de falar. Entre vários assuntos tratados, a paciente ofereceu à venda sua casa em Barcelona, onde ela sempre passa as férias.

        Dias depois, o médico recebeu a visita de Zeca Barreto, sobrinho de Lindalva. Com educação, ainda impressionado com a capacidade de trabalho e economia do povo nordestino, o doutor em neurologia comentou:

       - Zeca, rapaz, sua tia é uma pessoa tão simples e possui imóveis até na Espanha. Ela me ofereceu a casa dela de Barcelona. Fala de lá com tanta simplicidade, como se fosse uma casa qualquer.

        Zeca ouviu atentamente o renomado médico e esclareceu:

       - Doutor, num sei se a compra interessa ao senhor. Mas a casa de tia Lindalva é em Barcelona, município do Rio Grande do Norte, onde ela nasceu.



Colaboração: Zeca Barreto

(Imagem Google)

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

292 - JURAS DE DESAMOR



           No final da década de oitenta, em Várzea Alegre, por conta de um período conflituoso, um jovem casal decidiu se separar. Em face das várias brigas e discussões acontecidas, o conturbado relacionamento e a conseqüente separação chamaram a atenção de toda a pequena cidade cearense.

          O marido saiu de casa jurando publicamente que era um caminho sem volta. A mulher afirmava aos quatro cantos que jamais aceitaria o retorno do esposo.

          Algumas semanas após o rompimento, a esposa ligou para o marido para tratar do encaminhamento do processo de "desquite". O papo fluiu, reacendeu sentimentos e desejos e os dois acabaram marcando um encontro. Longe dos olhos e ouvidos dos fofoqueiros da cidade, combinaram se ver na madrugada, às escondidas.

          A feliz e secreta reaproximação do casal aconteceu como programada, numa tranqüila noite de segunda-feira.

          Após matar a saudade, o ex-marido saía pelos fundos da sua antiga residência, pulando um pequeno muro, quando alguém, de uma casa próxima, abriu a janela e falou em voz alta:

         - Eita desmantelo grande! O vizin botando chifre nele mesmo.

(imagem Google)


terça-feira, 21 de dezembro de 2010

291 PERU DE PÁSCOA (republicado)




          Estamos na época do coelho de páscoa e dos ovos de chocolates, mas em outro período um diferente animal protagonizou uma intrigante história. Vivia-se os últimos dias de 1995 e a família do Jardim das Oliveiras em Fortaleza se preparava para a aguardada ceia de Natal. Todos sentados à mesa observavam o peru girar dentro do recém adquirido forno de microondas. Arroz, batata, salada e outros acompanhantes esperavam o prato principal.

         Aquela festejada noite também marcava a inauguração do comentado equipamento doméstico. Nem milho de pipoca havia estourado no moderno forno.

         Depois de alguns minutos assistindo ao peru girar, Hudson, com fome, gritou:

         - Mãe, o peru tá apitando. Nun bom não?

         - Antoi, tira o peru aí, tou levando as cocas – pediu dona Fransquinha ao marido.

         Com a delicadeza de um trator de esteira, o já faminto Antônio de Leó mirou e apertou no botão vermelho para destravar a porta do forno. Amassou uma, duas, três vezes e nada de abrir. Na verdade, o biloto* afundou e não voltou. O suspense tomou conta do ambiente, pois não havia outra forma de abrir e resgatar o principal prato da ceia. Jayra, a filha caçula, alertou.

        - Pai, o senhor vai furar o forno com essa faca de mesa.

        Como o comentário da filha, Antônio parou de forçar as beiradas do já antipatizado equipamento. Não havia saída. O forno se trancou feito cofre e não havia como retirar o peru de dentro. Dona Fransquinha fritou meia dúzia de ovos para a família. Todos cearam apenas sentindo o cheiro do peru.

        O animal permaneceu trancado no forno durante todo o fim de semana prolongado. Somente na segunda-feira Antônio levou o forno para a assistência técnica. Ao voltar com o equipamento consertado, foi recebido na porta pelo filho Hudson que perguntou:

        - Pai, e cadê o peru?

        - Deixei na assistência. Eu lá quero aquele bicho teimoso aqui em casa.


*sinônimo cearense para botão, interruptor.

Colaboração: Hudson Batista Rolim

(imagem Google)

(publicado originalmente em 23 de março de 2010)

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

290 - DANÇA A DOIS



         Por muitos anos a zona do meretrício de Várzea Alegre funcionou em uma região afastada, chamada “Quatro Bocas”. Ali, a rotina seguia em ritmo e horários diferentes do restante da cidade. Se durante o dia reinava a tranquilidade, à noite o local fervia, recebendo seus inúmeros frequentadores.

       No fim do século passado, um conhecido comerciante do pequeno município cearense decidiu conhecer o tão falado cabaré. Após tomar umas cervejas e dançar de rosto colado com as animadas prostitutas, o visitante se dirigiu para o quarto com uma delas.

       Uma hora depois, na despedida, a mulher, retocando o batom, cobrou:

         - É cem cruzeiro.

       Mesmo satisfeito com o programa, o velho comerciante, sem esquecer o hábito de regatear, falou:

        - Tome cinquenta pra você, e os outro cinquenta fica pra mim. Apois cada um fez metade do serviço.

(imagem Google)

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

289 - CEARENSE 'AVEXADO'




         Em 1988, aluno da Universidade Federal do Ceará, participei do X Encontro Nacional de Estudantes de Direito – ENEDI, ocorrido no Rio de Janeiro. Nossa animada comitiva saiu de Fortaleza em um ônibus da empresa Uruburetama para minha primeira e marcante viagem à Cidade Maravilhosa.

        Já em solo carioca, após a programação do encontro estudantil, todas as noites saíamos em grupo para passear e conhecer pontos turísticos da linda capital.

        Certa madrugada, na volta para a Ilha do Fundão, onde nos hospedamos, paramos para lanchar na Avenida Brasil em uma venda de fast foad conhecida à época apenas no sudeste brasileiro. Com muita sede entrei correndo na lanchonete. De boca aberta meti logo a cara embaixo do bebedouro amarelo. Ao apertar o botão saiu da torneira uma substância pastosa.

        Percebendo minha gafe, sob o olhar espantando dos clientes e funcionários, um colega mais viajado falou:

        - Ei Várzea Alegre, tu tá doido, macho? Isso aí é maionese.

       Sem reconhecer que nunca entrara em uma lanchonete da rede Bob's, me dirigi ao bebedouro vermelho, e, ainda engolindo com dificuldade o espesso molho amarelo, respondi:

        - Claro que eu sei, abestado. Agora vou provar se o catchup daqui é do bom também.



(imagem Google)

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

288 - NATAL INESQUECÍVEL






         Em 1993, meu querido primo Hudson Batista Rolim recebeu um irrecusável convite para passar a noite de Natal na casa da nova namorada, no Bairro Cidade dos Funcionários, em Fortaleza. Cedo da noite , o apaxonado estudante vestiu a melhor roupa e apanhou o ônibus para cear na casa dos sogros.

       Depois de cruzar toda cidade, Hudson se impressionou ao chegar à bela e enfeitada casa da namorada. Semana antes, após um animado forró, na madrugada que a deixara ali em frente, não observara quão bonita era casa da sua amada.

        Mas naquela noite natalina esperava conhecer muito mais da sua futura família. No portão, Hudson foi recebido friamente pelo dono da residência, seu futuro sogro. Mesmo assim foi conduzido a uma mesa onde, sozinho, recebeu completa atenção dos bem vestidos garçons. Não sabia que a família de sua namorada vivia em tão boas condições. Consumindo uísque 12 anos e provando saborosos petiscos, o filho de varzealegrenses pensou: “dessa vez eu amarrei o meu burrin na sombra”.

         Mas já se aproximava da meia-noite e nada da namorada aparecer na festa. Até que finalmente ela ingressou pelo portão da garagem e passou a cumprimentar e desejar feliz natal a todos. Ao ver o namorado, a jovem se surpreendeu e falou:

         - Credo, tu tá é aqui Hudson? E eu esperando você lá em casa. Num sabia que tu conhecia doutor João, nosso vizinho.

        Assim, os namorados se despediram, atravessaram a rua e entraram na modesta casa, onde um casal de velhos cochilava na poltrona assistindo na TV ao especial de Roberto Carlos. Dali, o resto da noite, tomando coca-cola e comendo pedaços de um duro e frio peru,  Hudson, tentando esconder a decepção, observou pela janela o movimento e as luzes do animado castelo em frente que por poucas horas foi seu.



Colaboração: Hudson Batista Rolim

(imagem Google)

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

287 - TEIMOSIA HOSPITALAR


           O agricultor varzealegrense José de Souza Lima sofreu uma grave crise de estômago e foi levado por seu patrão Fatico à Casa de Saúde São Raimundo Nonato. Para melhor avaliação do seu quadro clínico, o agricultor conhecido como Pé Véi permaneceu internado no hospital por recomendação médica.

           Deitado em um leito da enfermaria e tomando soro na veia, o abatido Pé Véi, sem poder se levantar, passou a cuspir no chão do quarto. O Incontrolável hábito de expelir a saliva no chão só aumentara com o problema estomacal.

          Ao perceber a sujeira, a auxiliar de enfermagem limpou o local e instalou uma aparadeira de metal do lado esquerdo da cama. Não teve jeito,  Pé Véi recusou-se a usar o recipiente. Era só a funcionária da casa de saúde colocar a aparadeira de um lado da cama que o teimoso paciente cuspia do outro.

         Diante da situação, a chefe de enfermagem foi chamada ao quarto e falou:

         - Pé Véi, deixe de nojenteza. Pare com essa mania feia de cuspir no chão, homem. Use aqui a aparadeira – reclamou a experiente enfermeira apontando para o equipamento hospitalar.

        Com a mesma naturalidade que proseava na calçada do aprazível sítio “Bozinário”, o agricultor retrucou:

        - Valha. E essa vasia* é pra cuspir? Tava limpia, ariadia, que eu até tive medo de sujar ela...



* redução para vasilha, recipiente usado para as refeições

(imagem Google)

Colaboração: Klébia Fiúza

sábado, 11 de dezembro de 2010

286 - O FERREIRO E DONA MIRTES




          Francisco Basil de Oliveira, o ferreiro Chico Basil, possui uma impressionante capacidade para contar histórias.  Em Várzea Alegre, nos lugares que frequenta - praças, calçadas ou bares - sempre há um grupo de amigos interessado em ouvir suas bem-humoradas conversas. Nas narrativas, o perspicaz ferreiro, com humor inteligente, realça as características de seus personagens.

          Chico Basil conta que no final da década de setenta, em uma tarde de sexta-feira, no início da Rua Coronel Pimpim, caminhava pela calçada quando foi abordado por Francisca Mirtes Bitu Lemos. Com muito jeito e delicadeza, dona Mirtes pediu ajuda ao ferreiro para destravar a torneira do registro geral da água de sua casa.

          Interessado em ganhar uns trocados e gastá-los com várias doses de cachaça na vizinha bodega de Maria Araripe, Chico logo se dispôs a resolver o problema da residência do doutor Manoel Gonçalves de Lemos. Com força, o ferreiro tentou girar o registro, mas não conseguiu destravar a enferrujada torneira.

          Ansioso por reforçar o orçamento do fim de semana, Chico foi a sua casa, onde moldava e manipulava metais, e trouxe uma pequena barra de ferro. Dessa vez, sem precisar despender muita força, usando o pequeno pedaço de ferro como apoio, Chico finalmente destravou o registro e jorrou água nas torneiras da casa.

         Cumprida a missão, Chico Basil se aproximou da simpática dona Mirtes, aguardando receber o pagamento pelo serviço. A dona da casa, com sorriso no rosto, agradeceu bastante ao ferreiro, dizendo:

         - Seu Francisco, muito obrigado. Por isso eu e Gonçalves gostamos tanto do senhor.

        Triste por não haver recebido nenhuma quantia, Chico Basil saía cabisbaixo quando se reanimou ao ouvir o novo chamado de Dona Mirtes:

        - Seu Francisco, Seu Francisco, eu ia me esquecendo. O senhor se incomoda de deixar esse ferrin aqui? Vai que o registro trave de novo...


(imagem Google)

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

285 - A PENHORA




         Vários desses percursos, Antônio Ulisses fez acompanhado de Francisco Basil de Oliveira, o ferreiro Chico Basil, amigo de várias décadas. Os dois, por muito tempo, formaram uma perfeita dupla de contadores de “causos”. Hoje em dia, Chico diz a todos que perdeu o seu porta-voz, pois era Antônio Ulisses que dizia:

         — Conta essa, conta aquela - instigando a memória do ferreiro.

         Uma dessas histórias bem narradas ocorreu quando foram levar a Belina de seu Dirceu para uma oficina de Iguatu, pois o automóvel sofrera avarias decorrentes de um abalroamento. Dentro de uma pasta ia o dinheiro destinado ao pagamento da oficina e das despesas da viagem.

        Depois de deixar o carro no lanterneiro, os dois aproveitaram para ir à agência do Banco do Brasil receber o “PASEP” de Antônio Ulisses. Na casa bancária, o próprio Antônio Ulisses retirou da pasta os documentos pessoais para comprovar o direito ao benefício devido aos servidores públicos. Porém, para sua decepção, a quantia ainda não estava disponível.

        Como de praxe, ao deixarem o banco, seguiram para o pequeno comércio de uma típica vendedora de tapiocas. Ali, os dois, bastante esfomeados, saborearam várias daquelas deliciosas comidas típicas, recheadas com carne batida e beberam algumas xícaras de café.

         Saciado, Antônio Ulisses abriu a pasta para apanhar o dinheiro e quitar a conta da farta merenda. Mas, para sua decepção, quando mexera na pasta anteriormente, deixara cair toda a importância trazida na viagem. Da volumosa quantia levada, não restou um tostão sequer.

         Ainda atordoado e sem saber o que fazer, Antônio Ulisses se dirigiu a tapioqueira, dizendo:

         — Senhora, um loirão assim como eu não vai lhe enganar. Nem vou contar que perdi o dinheiro que a senhora não vai acreditar. Também não vou deixar meu relógio como garantia. Mas, pra que a senhora não desconfie, esse caboclinho aqui vai ficar penhorado até eu voltar com o dinheiro para pagar a despesa.

         Enquanto esteve aguardando a chegada do dinheiro para saldar a dívida, a vendedora, mesmo lavando as xícaras, não desviava o olhar de Chico. Este, já melindrado com aquela desconfiança da vendedora, falou:

         — Senhora, não se preocupe, pode lavar sua louça em paz. Eu não vou sair daqui correndo.

         Assim, Chico Basil ficou penhorado na tapioqueira até que, horas depois, Antônio Ulisses voltasse com o dinheiro emprestado de Raimundo Crispin, um conhecido que fazia linha para cidade de Iguatu. Saldada a dívida e levantada a incomum penhora, os dois amigos saíram juntos já rindo da inusitada situação.


*Extraído do Livro “Conte Essa, Conte Aquela – Histórias de Antônio Ulisses”

Ilustração: Edricy França

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

284 - PASSANDO A FAIXA





          Por mais que os objetivos das movimentadas feiras sejam outros, um dos pontos altos das exposições agropecuárias trata-se da escolha da rainha do evento. No final da década de noventa, recebi com alegria o convite para compor o grupo de jurados responsável pela eleição da mais bela moça da Expofeira de Macapá.

          No dia do concurso me preparei mais que as candidatas que desfilariam na passarela do parque situado no distante distrito de Fazendinha. Vesti a melhor roupa, tirei barba e cortei o cabelo, tudo para me apresentar bem diante das belas garotas.

         Ansioso, cheguei cedo ao local e aguardei o início do desfile tomando cerveja. Já perto de começar, decidi esvaziar a bexiga. Como os banheiros do parque eram um pouco distantes, preferi buscar uns botecos mais próximos, instalados precariamente fora da área da exposição.

          No modesto bar, pedi mais uma lata de cerveja e me dirigi imediatamente para a parte de trás do estabelecimento onde vi um banheiro. Ao entrar no cômodo escuro e de paredes de papel, pisei numa tábua mal colocada e cai dentro de um pequeno buraco. Era a fossa e eu me atolei até o meio das canelas.

          Com dificuldades e ajudado pela simpática dona do bar, sai do imundo buraco. Só de cuecas e camisa, sentando em um canto do botequim, com o mau cheiro impregnado no meu nariz, aguardei minha calça e sapatos serem lavados por uma prestativa funcionária do bar. Decepcionado, eu ouvia o insistente aviso no serviço de som do parque de exposição:

           - Atenção doutor Flávio Cavalcante. Atenção doutor Flávio Cavalcante. Convidamos para compor a mesa dos jurados para escolha da Rainha da Expofeira.


(imagem Google)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

283 - GATO NAMORADOR



           Na década de setenta, quando deixou  a pequena Várzea Alegre e foi morar em Fortaleza, minha avô Maria Amélia acolheu vários parentes e amigos que buscavam a capital cearense para estudar e trabalhar. Além dos filhos à época solteiros - Paulo Danúbio, Paula Gorete, Maria Zélia, Francisco das Chagas(Chico Nenê) e Antônio Ulisses - pela hospitaleira casa da minha avó passaram Zé Helder, Moacir, Costa Neto, Romélia, Rosélia e muitos outros. Circulavam tantos rapazes e moças que o local mais parecia um pensionato.

        Como todo lugar dominado por jovens, na casa da Avenida Expedicionários acontecia de tudo. Nessa época, Paulo Danúbio, com todo o vigor da mocidade, se engraçou por uma nova funcionária da residência. Certa madrugada, deixou o quarto destinado aos rapazes e foi visitar o cômodo onde dormiam as empregadas da residência, inclusive a mais velha e antiga delas, Tonha. Com cuidado, tateando no escuro, Paulo passou por baixo da rede de Tonha para alcançar a barulhenta cama de campanha onde aguardava a bela e jovem funcionária.

         Com os ruídos e gemidos provocados pelo entusiasmado encontro, a moça velha Tonha acordou e resmungou:

        - Oxente, que barulho é esse ? Quem taí?

       Antes de sair às pressas do quarto, ainda ofegante,  Paulo imitou um pequeno felino e disse:

       - Miauuuuuuuu, é um gatin.

        No dia seguinte, logo cedo, Tonha e a jovem empregada preparavam o saboroso café da manhã quando apareceu na cozinha a querida dona da casa e sentou à mesa  com os filhos Paulo Danúbio, Maria Zélia e Paula Gorete. Ansiosa para contar o ocorrido em seu quarto, a fiel empregada Tonha, com mistura de ingenuidade e malícia, coando o café,  perguntou à patroa:

        - Dona Maramélia, gato fala?


Colaboração: Rosiana de Carvalho Costa

(imagem Google)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

282 - AZAR NO JOGO




           Em certa época, funcionou na calçada alta da casa do talentoso artista Damião dos Bonecos, na rua 13 de Maio, uma concorrida mesa de baralho. Do “fó e bata” costumavam participar o próprio dono da casa, Antônio Ulisses, Chico Basil e José Faris Mota (Zé de Abel).

          No meio das partidas, Fransquinha, esposa de Damião, servia gentilmente aos jogadores xícaras de saboroso café “torrado no caco”. Ao receber a sua, antes de dar um primeiro gole, Antônio Ulisses olhava para o genial criador do “Casimiro Coco” e dizia:

         — Vixe...E é sem queijo?

        É óbvio que se tratava apenas de mais uma brincadeira para aperrear o também espirituoso dono da casa.

         Lá pelas tantas, ainda no mesmo jogo, Chico Basil fez um descarte e Zé de Abel, de imediato, vibrou, dizendo:

        — Eita Carta Boa!

         Decepcionado por haver entregue a carta esperada por seu adversário de jogo, o ferreiro retrucou com um maravilhoso repente:

         — Zé, carta boa é a que vem de São Paulo, com dinheiro da Volks.

         Mais adiante, ainda do decorrer da partida, o mesmo Zé de Abel, num dia de sorte, comentou:

         — Oh, armação grande!

         Mais uma vez, azarado no jogo, o ferreiro não mediu as palavras, e disse:

         — Zé, armação grande foi a de um jumento de lote que eu vi hoje de manhã na roça de Virgílio Moreno, no “Baixii” do Exu.

 
*extraído do livro Conte Essa, Conte Aquela - Histórias de Antônio Ulisses
Ilustração: Edricy França

sábado, 4 de dezembro de 2010

281 - BOMBEIRO REZADOR



        Zé Mendonça foi um rezador afamado que viveu pelas bandas das Lavras da Mangabeira, município do sertão cearense. Muitas pessoas buscavam seus serviços para curar doenças graves, benzer chocalho e proteger o gado do tingui, e também em busca de apoio em situações que o homem comum não conseguia resolver.

          Em uma forte estiagem da década de setenta, vários sítios do município lavrense sofreram com incêndios em suas matas e roças. Um preocupado agricultor do distrito do Arrojado procurou Zé Mendonça para conter o avanço do fogo. O serviço foi contratado e as fortes rezas começaram.

        Passadas algumas horas o lavrador voltou ainda mais preocupado:

       - , o fogo é aumentando. Num respeitando nem os aceiro que a gente fez perto das cerca.

      - Me diga direito como começou esse fogo? – perguntou o famoso rezador.

       - Foi só um vizin atear fogo na broca dele com isqueiro que a bagaceira começou.

       Já retomando o ritual de orações, Zé Mendonça justificou:

      - Entonce foi isso. Eu tava rezando errado. Tava rezando era pra fogo riscado de fósco*.



* Redução para fósforo bastante usada no sertão nordestino nas palavras proparoxítonas.

Colaboração: Maria de Lourdes Souza

(imagem Google)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

290 - TRONO AO AR LIVRE



          Embora criado há centenas de anos e comuns nas cidades grandes, os convenientes banheiros, com água encanada e modernos vasos sanitários, demoraram a se espalhar pelo interior do Brasil. No sertão cearense, nas aéreas rurais, os adultos usavam as velhas retretes afastadas da casa, e os meninos costumavam fazer suas necessidades atrás das moitas ou no meio das capoeiras de jurema*.

          Na década de quarenta, nos poucos anos em que morou em Fortaleza, em uma pensão, o jovem varzealegrense Maurício estranhou alguns costumes da cidade grande. Nada na capital parecia ser melhor do que na sua vida simples e saudável no sítio Varas, de onde fora trazido por seu irmão José Fiúza Lima, Zezé.

         Naquele período, Maurício não escondia a saudade incontrolável das pessoas e lugares que deixara na pequena Várzea Alegre. Certa manhã, conversando com um amigo de Zezé, o varzealegrense apresentou várias situações que o incomodavam na capital alencarina. Buscando convencer sua permanência em Fortaleza, o amigo do seu irmão aconselhou:

          - Maurício, você logo se acostuma, aqui tudo é melhor que no interior, rapaz. Não tem nada ruim aqui não.

         O jovem agricultor, com sua sinceridade matuta, respondeu:

        - Inté pra cagar é esquisito aqui. Toda vida saprica pingo d’água fria na bunda da gente, homi.



* jurema é uma árvore espinhosa muito comum no semi-árido nordestino.

Colaboração: Ana Souza Cassundé (tia Anísia)

(imagem Google)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

289 - FEIJOADA PAGÃ





          Embora a feijoada seja um prato tipicamente brasileiro, apreciado em todas as regiões do país, sua origem encontra divergências entre os historiadores. A corrente defensora de que a iguaria surgiu nas senzalas explica que os escravos aproveitaram as partes do porco não utilizadas pelas cozinheiras da casa grande para temperar o feijão preto.

        Em uma pequena cidade do interior nordestino, na década de noventa, logo após a cerimônia de batizado, o pai e padrinho da criança resolveram organizar uma feijoada para familiares e amigos. Os compadres, colegas de trabalho, dividiram as responsabilidades. Um se obrigou a comprar o feijão preto e o outro a conseguir os ingredientes.

        Ao chegar a sua casa, o pai da criança batizada logo providenciou o feijão e o colocou para cozinhar numa grande panela. Pouco depois os convidados começaram a chegar sem que aparecesse o combinado tempero da feijoada. Até que de repente, bastante suado, surgiu o compadre trazendo na cabeça um grande aparelho de som e duas caixas. Ofegante, foi logo dizendo ao dono da casa:

        - Pronto, cumpade, é só ligar. Taqui o grediente que prometi.

       Decepcionado, o pai da criança recém batizada retrucou:

        - Mas cumpade, tu é muito atroiado. Tu pensa que grediente é só marca de som é? 3 em 1 potente eu também tenho. Era pra tu trazer o grediente da feiojada, homi.



Colaboração: Rommel Oliveira

(imagem Google)

terça-feira, 30 de novembro de 2010

288 - ROUPA NOVA




          Na metade do século passado, Maurício e Pedro, bem jovens, saíram da pequena Várzea Alegre para estudar em Fortaleza. Os dois foram levados pelo irmão José Fiúza Lima, Zezé, que já estudava e trabalhava na capital alencarina.

           Acostumados com a vida simples do aprazível sítio Varas, onde nasceram e cresceram, os irmãos varzealegrenses, principalmente Maurício, estranharam a rotina da cidade grande. Hospedado em uma pensão no centro da capital, todo o tempo que ali passou, Maurício sonhava com a tranqüilidade matuta do seu pacato sertão.

          Certo dia, na pensão, Maurício foi indagado porque ainda não vestira a camisa nova de linho que ganhara de presente em Fortaleza. Sem esconder o desejo de voltar para sua terra natal, com brilho nos olhos, falou:

           - Só vou usar essa camisa em Várzea Alegre. Aqui na Fortaleza ninguém vai nem reparar que tou de roupa nova.



Colaboração: Ana Souza Cassundé (tia Anísia)

(imagem Google)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

287 - FECHANDO A CALÇADA




           As cidades, especialmente as maiores, aboliram o saudável hábito do encontro de seus moradores para conversas nas calçadas. Muito são os motivos elencados para essa mudança na rotina das pessoas, entre os quais o advento da televisão e o aumento da violência nos centros urbanos.

           Na metade do século passado, em Várzea Alegre, sertão cearense, a calçada de Antônio de Norões Moreira, genro do chefe político e coronel Antônio Correia Lima, era bastante freqüentada. Todo fim de tarde, na frente de sua casa, Norões e a esposa Santa recebiam vários amigos e compadres para uma agradável conversa sobre os mais variados assuntos. A boa prosa seguia até cerca de oito horas da noite, quando todos se despediam e o educado casal se recolhia para dormir.

           Certa noite, mesmo com Norões bocejando e Santa quase cochilando, um compadre insistia no prosseguimento da conversa. Os demais freqüentadores já haviam deixado o local, mas aquele ficou até bem mais tarde.

           Como o visitante não parava de conversar nem dava sinais que ia embora, não mais suportando o sono e percebendo o cansaço de sua esposa, já próximo das nove horas, o refinado Norões se levantou da cadeira de couro e falou:

           - Santa, vambora entrar que o compadre tá com muito sono.



Colaboração Bruno de Souza Costa

(imagem Google)

domingo, 28 de novembro de 2010

286 - 'EGGS' MEXIDOS



           Em um vôo para os Estados Unidos dois cearenses seguiam na mesma fila de poltronas do avião. Um já ambientado e acostumado com o demorado percurso. O outro, passageiro de primeira viagem, cheio de receios e com dificuldades para se comunicar com as belas moças do serviço de bordo da companhia aérea americana.

         No fim da manhã, chegada a hora da refeição, observando a desenvoltura de seu companheiro que a todo instante falava em inglês com as aeromoças, o turista iniciante perguntou:

          - , eu num como sem um disco voador. Como é ovos em inglês?

         - Eggs, Mané, eggs. Mas num sei se servem ovos aqui não...

         O tímido cearense tomou coragem e apertou o biloto* luminoso para chamar o serviço de bordo. A bela moça da companhia se aproximou sorrindo e o cearense perguntou:

        - Tem éguis?

        Imediatamente a aeromoça saiu para providenciar o complemento da refeição do passageiro. Passados alguns minutos, voltou trazendo o pedido. A jovem comissária, impressionada com o apetite do cearense, trouxe uma grande bandeja com dez ovos.



*segundo o dicionário cearense significa botão pressionável.


Colaboração: Zeca Barreto


(imagem Google)

sábado, 27 de novembro de 2010

285 - ROMANTISMO CADENTE

 

 
          Há alguns anos, o varzealegrense Gean Claude iniciou namoro com Agatângela, moradora do sítio Tupuiú, em Aquiraz, região metropolitana de Fortaleza. Apaixonados, os dois curtiam passar a noite ao relento, sentido a brisa e observando a lua e as estrelas.

          Certa madrugada, na tranquilidade do sítio, o casal olhava para o horizonte quando surgiu no céu uma estrela cadente. A namorada encostou a cabeça no peito do amado e perguntou:

         - Gean, tu viu?

         - Vi sim - respondeu o namorado.

         - O povo acredita que quando cai uma estrela dessa a gente tem direito a fazer um pedido. Gean, tu fez? – indagou, Solângela, com os olhos brilhando de felicidade.

          Gean abraçou ainda mais fortemente aquela que seria sua futura esposa, e disse:

           - Fiz sim.

          - E o que tu pediu? - continuou a romântica namorada, já sonhando com o casamento.

          - Pra ela num cair aqui – finalizou, Gean, com seu incontrolável bom humor.

 
Colaboração: Gean Claude Holanda

(imagem Google)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

284 - DEZ MANDAMENTOS*






          Durante certo período, quando ainda solteiro, Antônio Ulisses habitou com alguns outros rapazes em uma República, localizada no início da Rua dos Perus/Coronel Pimpim. Como aconteceu em todos os outros em que morou, o local foi bastante frequentado pelo seu grupo de amigos.
 
         Aquela habitação coletiva, além do clima de alegria constante, marcou época pela completa falta de organização dos seus moradores. Antônio Ulisses, contudo, tentou colocar ordem na casa, afixando, logo na entrada, um belo cartaz confeccionado pelo artista e pintor varzealegrense Ildefonso Vieira Lima - Delfonso, contendo os “10 mandamentos da República”:
 
1º) - Proibido cagar no chão.

2º)- Quem entrar por último escore a porta com a pedra.

3º) Não jogue o copo dentro do pote.

4º) Não usar o penico pra encher o pote.

5º) Não cuspa nem escarre nas paredes.

6º) Lave sua rede pelo menos uma vez por ano.

7º) Desarme sua rede quando viajar pra outra cidade.

8º) O que você ouvir aqui, favor espalhar por toda cidade.

9º) 30 de fevereiro – dia da Faxina Geral.

10º) Colabore com a desorganização do ambiente.


* do livro "Conte Essa, Conte Aquela - Histórias de Antônio Ulisses".
(imagem Google)