domingo, 28 de junho de 2009

51 - "NÃO SOIS MÁQUINAS! HOMENS É QUE SOIS!"





          O clima semi-árido aumenta bastante as dificuldades e sacrifícios atravessados pelo valente povo do nordeste brasileiro. No entanto, a falta das chuvas não endurece o coração do sertanejo. Ao contrário, dia após dia, suas histórias dão lições de fraternidade, amizade e companheirismo.

           O agricultor Zé de Hemínia foi um desses humildes nordestinos com inesgotável capacidade de colaboração. Todo enterro que passava vindo do distrito do Juazeirin em direção à sede do município de Várzea Alegre, Zé fazia questão de ajudar. E naquela época o corpo era transportado em uma rede segura por um pau e carregada por dois fortes homens.

           Em um dia muito quente do mês de setembro, Zé de Hermínia viu passar um pequeno cortejo trazendo na rede mais um defunto. Sem sequer saber o nome do falecido enrolado ao lençol, logo se prontificou a ajudar. Pôs no ombro uma das pontas do pau e, como eram poucos os ajudantes, não alternou com ninguém o seu lado da rede.

          Depois de cerca de três léguas de penosa caminhada, quando o enterro já ia passando em frente à matriz da Igreja de São Raimundo Nonato, o suado e fatigado Zé de Hermínia perguntou:

         - Pera aí, o defunto não vai entrar na Igreja mode padre Otávio benzer não?

         Com ar de perplexidade, um dos ajudantes do cortejo respondeu:

        - Vixe, Zé, né um defunto que nós tamo carregando não. É uma máquina de costura pra mode seu João Alves consertar.


Colaboração: Elias Frutuoso


sábado, 27 de junho de 2009

50 - QUEM TEM, TEM MEDO




          Por muito tempo seu Lourival Clementino conduziu o único meio de transporte que ligava a pequena Várzea Alegre ao desenvolvido município do Crato. Naquele tempo de péssimas estradas, para chegar à capital do cariri só mesmo como passageiro no caminhão misto de seu Lourival. O filho Pedro Clementino, seguindo o mesmo caminho do correto e responsável pai, herdou a capacidade de dirigir e se tornou um habilidoso e confiável motorista.

           Mas em uma noite de folga do ano de 1966, o jovem e simpático Pedro de Lourival resolveu assistir a um filme de faroeste no cine Odeon de Antão de Pedro Tonheiro, em imóvel situado na antiga Rua Major Joaquim Alves. Tudo corria bem na grande tela quando aconteceu algo inesperado. No momento de um disparo de revólver do filme, Pedro de Lourival sentiu uma forte fisgada em suas costas. Sofrera uma violenta facada e o sangue jorrava sem controle. Ao acender a luz da sala do cinema verificou-se que a agressão não partiu do ator principal nem do vilão do filme, mas de um outro expectador do bang bang, que ainda permanecia com a faca na mão.

           Imediatamente a vítima foi socorrida e encaminhada à recém inaugurada Casa de Saúde São Raimundo Nonato. Já na Delegacia, onde foi levado para os necessários esclarecimentos, o agressor surpreendeu os policiais ao revelar o motivo da violenta atitude. Poucas vezes se viu alguém com tanto medo de ser possuído. É o que se vê das palavras do furioso agressor:

         - Cabo Saraiva, eu furei Pedro de Lourival porque sonhei que ele me comia.


Colaboração: Pedro Clementino, conhecido como Pedro de Lourival.
(imagem Google)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

49 - MENTIR SOCIALMENTE

              Quem nunca mentiu que conte a primeira história.

          O narrador de causos, alimentado pela fecunda imaginação e criatividade, termina misturando ficção com realidade. É raro encontrar um bom contador de histórias que dispense a pequena e inofensiva mentira como reforço e enfeite de suas conversas.

          O servidor público federal e sindicalista Antônio Gerson Bezerra de Moraes, espirituoso primo conhecido por “Piroxa”, sobre um conterrâneo contador de exageros, costuma dizer:

          - Esse sujeito mente tanto que já contou uma história em que no final de uma briga ele próprio morria.

          Não bastando para definir a capacidade criativa do mentiroso, “Piroxa” ainda reforça:

        - Nunca vi igual. Antes de começar a falar ele já aprendeu a mentir.

domingo, 21 de junho de 2009

48 - REMÉDIO SÓ COM RECEITA




          Nascido no pequeno distrito de São José, município cearense de Lavras da Mangabeira, Manoel Gonçalves de Lemos se formou em medicina na cidade de Salvador em 1945. Com o dificultoso diploma na mão, decidiu clinicar em Várzea Alegre, bem próximo de sua terra natal.

            Por mais de quatro décadas doutor Lemos exerceu sua atividade na Terra do Arroz e localidades vizinhas. Na época eram raros os profissionais de saúde. Nem se imaginava o atual programa Saúde da Família, com visitas rotineiras de equipes médicas às residências. No meio do século passado, para atender pacientes nas regiões mais distantes, os deslocamentos eram realizados no lombo do cavalo.

            Certo dia, no final da tarde de um domingo, o médico e poeta passava por uma região isolada da zona rural quando foi chamado para atender um cidadão que sofria no fundo de uma rede com fortes dores. Naquele dia, não realizava atendimento, por isso Doutor Lemos fora apanhado sem seus instrumentos normais de trabalho, inclusive sem o bloco de receitas.

           Após examinar o doente, para anotar o nome dos remédios e a indicação das doses e horário para aplicação, o médico pediu aos proprietários da humilde casa um lápis e um pedaço de papel. Como não foram encontrados esses objetos, o médico apanhou um pedaço de carvão no fogão à lenha e anotou os nomes dos medicamentos e a posologia na face interna da janela de cedro da residência.

           Antes de sair, o médico orientou o dono da casa a passar para um papel as anotações e providenciar com urgência a aquisição dos medicamentos.

           Logo cedo do dia seguinte, na sede do Município de Várzea Alegre, na sua conhecida Farmácia Confiança, o comerciante João Pimpim se surpreendeu com a chegada de um cliente trazendo uma grande janela na cabeça.

          - O senhor tem os remédio dessa receita, seu João Pimpim? – perguntou o suado cliente apontando para a pesada janela já largada sobre o balcão da farmácia.


Colaboração: Hudson Batista Rolim
(imagemGoogle)

sábado, 20 de junho de 2009

47 - CUIDANDO DA SAÚDE




           O exame preventivo de câncer de próstata trata-se da principal ferramenta na busca pela cura da doença. O toque retal, exame clínico realizado por médico urologista, serve para monitorar o aparecimento de nódulos suspeitos.

           Porém, mesmo as louváveis campanhas de esclarecimento do exame não afastam as brincadeiras e as piadas que afetam os homens com mais de quarenta anos. A partir dessa faixa etária, são alvos de comentários jocosos, o que aumenta o receio da realização do imprescindível preventivo.

           Certo dia, no período de férias, os amigos Antônio Ulisses, João Valder e Irapuan Costa combinaram um encontro no conhecido bar de Toinha Boa Água, no Calçadão Antonio Costa. O trio não se reunia há algum tempo pois Irapuan morava na capital cearense e Valder, um pouco mais longe, no Estado da Bahia. Matando a saudade com alegria, os amigos rememoram as histórias da juventude vividas intensamente em Várzea Alegre. Lembraram-se dos antigos carnavais, dos banhos de açude e das namoradas.

          No meio da divertida conversa, após consumirem bastante cerveja, o engenheiro Irapuan Costa, que também já rompera a idade de cinqüenta anos, falou da necessidade de cuidar da saúde, citando os regulares check ups, especialmente o exame de próstata.

         Antônio Ulisses, após os conselhos do querido primo, fingindo seriedade, gesticulando como se dirigisse um carro, falou:

         - Vou dar um conselho a você, Puan. Tenha medo não. Quando for fazer esse exame, vá logo
entrando no hospital de marcha ré.

 Colaboração: João Valder Saraiva de Carvalho
(imagem Google)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

46 - PURO DE ORIGEM




        Em 1984 Antônio Ulisses se mudou com toda família para o sítio Santa Rosa, área rural próxima à sede do município de Várzea Alegre. Mesmo faltando experiência nos novos ramos, decidiu investir em equipamentos agrícolas e pecuários.

       Assim, procurou o seu primo e amigo Chico Piau, desejoso de adquirir um cavalo para a lida diária do sítio e também destinado ao passeio de seus filhos, principalmente o primogênito Antônio Costa. Sem perder a oportunidade do negócio, Chico logo lhe ofereceu um pangaré, não economizando elogios ao cavalo:

       - Primo, tenho um novo, na segunda muda dos dente, bom de sela, sem mocas*, e ainda tem sangue do cavalo de raça do Doutor Mário Leal.

        Antônio Ulisses não pestenajou. Impressionado com as qualidades oferecidas, mesmo sem ver o animal, fechou logo o negócio.

         Porém, infelizmente, em poucos dias verificou que o cavalo era de difícil trato. Para selá-lo, Cabral, Zé do Crato e outros antigos moradores do sítio precisavam madrugar na roça, e, mesmo usando um saco de milho, não conseguiam atrair o velhaco animal.

         Já desconfiado com a aquisição, Antônio Ulisses pediu ao seu amigo Francisco Ferreira Lima que examinasse o quadrúpede, que, encabrestado, bufava debaixo do pé de Juazeiro. Experiente agricultor, Fransquin Crente abriu a boca do animal e foi logo dizendo:

        - Cumpade, Dom Pedo deu o grito do Ipiranga montado nesse cavalo. Esse bicho é véi demais!

         Na primeira oportunidade em que se encontrou com Chico Piau, Antônio Ulisses, decepcionado, reclamou:

        - Mas Chico, rapaz, você ainda meu parente, pegar e me vender uma cavalo véi daquele.

         A resposta do esperto negociante foi imediata:

        - Antônio Ulisses, deixa de ser besta. Bom é véi que tem juízo, experiência, e num tem perigo de derrubar teus minino.


* vocábulo varzealegrense que significa vício, mau hábito.
Colaboração: Antônio Alves da Costa Neto

domingo, 14 de junho de 2009

45 - HISTÓRIA DE ASTRONAUTA




          Logo mais em 20 de julho serão comemorados os 40 anos da chegada do homem à lua. Era tempo da guerra fria contra a antiga União Soviética quando os Estados Unidos patrocinaram um impressionante passeio de militares pelo território lunar.

          Essa história sempre provocou polêmica no mundo inteiro, existindo até hoje teses defendendo que a visita à lua se revestiu de mera fraude dos americanos, desejosos de impressionar o conflituoso mundo da época com o seu poderio bélico e tecnológico.

          Na pequena e então isolada Várzea Alegre, a inusitada viagem do astronauta Neil A. Armstrong e seus companheiros também provocou discussões entre os moradores. O cético José Alves da Costa, renomado fazendeiro, nunca engoliu a famosa aventura americana.

           Recordista na produção de arroz em suas terras férteis dos sítios Baixio do Exu e Umari, Zezin Costa, como conhecido, perdia a paciência quando alguém comentava acerca da chegada do homem à lua:

          - Seu Zezin, a Rádia Educadora do Crato tá dizendo que os “ostronauta” agora vai visitar outros pranetas. Achou pouco ir pa lua.

          Ao ouvir tais comentários, o enfezado Zezin Costa gritava em toda altura:

         - Vocês acreditam em toda mentira. Vai ver esses homem foi pro outro lado da serra e tão dizendo que foi pra lua.

(imagem Google)

segunda-feira, 8 de junho de 2009

44 - SERENATA




         Em uma noite do início dos anos 70, os primos e amigos Antônio Ulisses e João Válder Saraiva de Carvalho resolveram tomar uns tragos no bar de Zé de Zuza, local à época preferido pelos jovens de Várzea Alegre. Já tarde, com o estabelecimento prestes a cerrar as portas, decidiram participar de uma serenata a convite de dois outros rapazes, membros da família conhecida por “Quereno”.

        Lá pelas tantas, à custa de mais uns bons goles, a calorosa noite tornou-se ainda mais animada, com os “Querenos” tocando violão e os demais cantando músicas românticas em frente às residências de moças da cidade. Era alta madrugada quando as jovens e seus pais acordaram incomodados com o pouco afinado canto dos rapazes.

         Não tardou para que a polícia chegasse ao local e repreendesse os perturbadores. Logo após a saída dos policiais, Antônio Ulisses e Valder quiseram findar a serenata, mas os irmãos “Querenos” insistiram em continuá-la. Não deu outra, a polícia voltou e enquadrou os seresteiros pela insistência na perturbação ao sossego e aos ouvidos dos moradores.

         Na delegacia, sem oportunizar defesa, os truculentos policiais trancaram os quatro jovens em uma das celas. Passadas algumas horas, depois de muita insistência, Antônio Ulisses finalmente conseguiu falar com o delegado e, entre outras gaiatices, disse:
         - Doutor, a gente não perturbou ninguém. Era dois sem querer e dois “quereno”.

         Sensibilizado pelo bom humor e espirituosidade do rapaz, a autoridade policial acatou o argumento e mandou soltar imediatamente os quatro jovens cantadores.


* Contribuição de João Válder Saraiva de Carvalho
(imagem Google)

domingo, 7 de junho de 2009

43 - A CABEÇA DA LAGARTIXA





          Dona Balbina Meneses Diniz, vizinha da rua Duque de Caxias, apreciava a boa conversa com Antônio Alves da Costa e Maria Amélia Gonçalves Costa, pais de Antônio Ulisses. Numa das constantes visitas à residência do primo Antônio Costa, situada na rua Duque de Caxias, na pacata Várzea Alegre, onde hoje funciona o estabelecimento “O Boticário”, Dona Balbina presenciou um interessante fato que permaneceu até hoje em sua aguçada memória. Tal cena, acontecida quando o garoto Antônio Ulisses contava com menos de três anos de idade, já revelou a graça, desenvoltura e apetite que marcaram a existência do nosso personagem.

          Oriundo de uma típica e numerosa família do interior cearense, formada por treze filhos, desde o nascimento, Antônio Ulisses recebeu cuidados de Lucíola, uma de suas irmãs mais velhas. Entre as suas incumbências, mesmo bem jovem, estava a responsabilidade de alimentar o menino.

           Conta dona Balbina que, em um desses dias, Lucíola preparava a refeição desfiando uns pedacinhos de carne para facilitar a mastigação do garoto. Sem perceber o olhar vigilante do pequeno, a irmã comeu um pedaço da carne. Ao ver a irmã provando um pouquinho da sua refeição, Antônio Ulisses iniciou um incontido choro. A jeitosa Lucíola, tentando acalmá-lo, disse que não era carne que tinha na boca, mas a cabeça de uma lagartixa que havia caído no prato.

         O já insaciável garoto, mesmo com a rápida e inteligente desculpa criada pela irmã, gritou, inconformado:

        — Eu quero comer a cabeça da lagartixa.



* extraído do livro "Conte Essa, Conte Aquela - Histórias de Antônio Ulisses.
(imagem Google)



terça-feira, 2 de junho de 2009

42 - AUTO -ESCOLA ZÉ DO NORTE




         Mesmo proprietário da movimentada Sapataria Cavalcante, Zé do Norte, precavido e econômico, nunca descuidou do seu paiol. Temendo as recorrentes secas do sertão e as carestias causadas pela falta do cereal na entressafra, sempre conservou o depósito de sua casa repleto de sacas de arroz.

          No começo de uma manhã de domingo da década de setenta, esperava um operário para espalhar arroz com casca na calçada, quando recebeu a visita de seu irmão Antônio Cavalcante Cassundé (Pista) e do seu tio Carlos Gonçalves Cassundé (Carlito). Os dois convidaram Zé do Norte para participar de uma aula de direção no jipe de Zé de Ginu. Mesmo já vestido com calça e camisa brancas, arrumado para a missa matinal, Zé do Norte aceitou o convite, pois ansiava aprender a dirigir. Agoniado, sem sequer avisar a sua esposa Antônia Souza Cavalcante (Toinha), pulou no banco traseiro do famoso automóvel da época.

          Antes de pegar a estrada e dar as primeiras lições, Carlito parou o jipe na bomba do Posto Shell de Antônio Rolim e insinuou:

          - Zé, esse bichin de quatro rodas só anda se botar gasolina.

          Assim, embriagado de alegria com a incomum oportunidade de aprender a dirigir, o seguro Zé do Norte meteu a mão no bolso e encheu o tanque do automóvel.

          Sempre com Pista na direção, o jipe foi na cidade de Farias Brito e voltou. No sacolejo da viagem de mais de sessenta quilômetros percorridos em estrada de chão batido, Zé do Norte não pegou no volante do veículo, ficou apenas ouvindo atentamente as instruções de Carlito.

           Por volta do meio-dia, Zé do Norte finalmente foi deixado na porta de casa e logo viu que o seu arroz não fora espalhado para secar ao sol. Ainda naquele instante, ao encontrar o esposo chateado e com a roupa amassada e vermelha de poeira, Toinha reclamou:

         - Zé, você combina com o homem pra cuidar do arroz e sai sem avisar...

         Furioso por ter sido enganado pelos espertos Carlito e Pista, sentido porque perdera a missa e não secara ao sol suas quartas* de arroz, Zé do Norte ordenou:

         - Toinha, minha véia, pegue o pau de bater arroz e me dê uma surra. Um caba besta como eu merece é peia.


* unidade cearense de peso correspondente a sessenta quilogramas

Colaboração: Luiz Cavalcante