quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

105 - VACAS DE DIVINAS TETAS






          Há lugares, animais e pessoas que, mesmo não fazendo jus aos nomes, possuem inúmeras outras qualidades. Na cidade de Várzea Alegre, conhecida e cantada como Terra do Contrastes, não poderia ser diferente.

         Em meados do século passado, Raimundo Pretin vendia carne no Sanharol, agradável e acolhedor sítio localizado próximo a sede do Município. Além do trabalho de marchante, cuidava diretamente do seu rebanho bovino, inclusive ordenhando algumas vacas.
 
        Cedo da manhã, Raimundo sofria em seu curral tentando acalmar uma das vacas. Embora muito boa de leite, Delicada era arisca, não aceitava ser peada e amarrada ao bezerro. Todo dia, na hora de tirar o leite, era o mesmo sofrimento:

        - ÊÊÊ Delicada, ÔO vacaaaaaa. Delicada...ÊÊÊ....

        Mas não adiantava o aboio de vaqueiro e o esforço de Raimundo. Delicada, enfurecida, empurrava e virava o balde do leite, soltava a peia, dava coices e chifradas.

        Certa manhã, vindo do sítio Chico pra comprar carne, Joaquim Vieira encostou-se à porteira do curral e comentou:

       - Você ainda chama essa vaca de Delicada, homi.

        Raimundo, enfezado e cansado com a difícil lida com o gado leiteiro, respondeu:

       - Ela é que nem Linda, tua muié.


Colaboração: Zé de Bastião da Boa Vista
(imagem Google)

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

104 - PRATO CAMUFLADO






       Gostamos ou sentimos cada parente, cada amigo, cada pessoa de maneira especial, porém distinta. Não há como comparar os sentimentos, afinal há amor suficiente para distribuir entre todos. Assim, nada mais constrangedor para uma criança do que responder às tradicionais perguntas: “nenê gosta mais do papai ou da mamãe? Quer mais bem a vovó sicrana ou a vó fulana ?

        Mesmo amando todos, na casa de cada um de seus filhos ou filhas minha avó materna Maria Amélia tinha preferência por alguns netos. Que me perdoe minha irmã Flaviana, mas lá de casa eu e Fernando gozávamos de certo prestígio com nossa querida avó.

       Meu irmão merecia os créditos adicionais que recebia. Afinal, era muito paciente e dedicado. Trocava as resistências do ferro de engomar e lia as intermináveis bulas de remédio da nossa velhinha.

       Nascidos no interior cearense, eu e inúmeros primos moramos vários anos com nossa avó na capital alencariana. Eu percebi claramente a preferência no horário das refeições. Vovó se mantinha modestamente com os proventos de professora. Na sua acolhedora casa não havia tempero suficiente para atender o voraz e interminável apetite dos vários netos que ali estudavam.

        Mas até pra demonstrar suas preferências minha vozinha era inteligente e criativa. Para não provocar ciúmes, aparentemente meu cardápio era igual ao demais. Contudo, sutilmente, vovó escondia um segundo bife em meu prato, encoberto pelas fartas porções de arroz e feijão servidas no almoço.


(imagem Google)

domingo, 20 de dezembro de 2009

103 - ÁGUA MINERAL



        Se comunicar sempre foi uma necessidade entre os seres humanos. Nos tempos remotos, para se entender, os homens usaram gestos, sinais, códigos, que só depois de um longo período se organizaram em uma linguagem. Mas aquilo que surgia como fator de integração entre os povos nem sempre cumpriu completamente esse papel. Os indivíduos traduzem as informações recebidas de acordo com fatores sociais, culturais, religiosos e muitos outros.

       Certo dia, um novo garçom foi apresentado para gentilmente servir água, café e outros lanches em todas as inúmeras salas do nosso trabalho. Com atenção, cuidou em verificar as particularidades de cada um dos diferentes doutores que trabalhavam naquele importante órgão público. Uns preferiam café preto, outros com leite. Uns com açúcar, outros com adoçante. Uma bela e jovem doutora, cuidadosa com os seus dentes e estômago, atenta às orientações dos especialistas, logo alertou:

        - Eu gosto da minha água natural, tá? Sempre natural.

        A partir daquele dia, o dedicado garçom não deixou faltar a água solicitada. Antes mesmo de ser chamado já aparecia na sala trazendo em sua equilibrada bandeja o precioso líquido. Porém, passados alguns meses, no meio de uma manhã, recebeu uma ligação para ir imediatamente ao gabinete. Ao chegar, foi logo cobrado pela chefa:

        - Por que ainda não trouxe minha água? Você não sabe que eu costumo beber bastante água pela manhã?

        - Perdão, doutora, mas desde cedo tá faltando água. Tão trocando uns canos da rua. Mas desculpa eu perguntar. Por que a senhora prefere água da torneira?


(imagem Google)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

102 - PROFUNDA INSPIRAÇÃO



        As belas paisagens da natureza sempre inspiraram os poetas. Mirar a infinidade do mar, passear por um florido jardim ou correr por campos verdejantes permitiram aos artistas a criação de impressionantes obras poéticas.

         Mas recentemente me surpreendi com versos de um autor desconhecido registrados em um espaço inusitado. Após almoçar em um badalado restaurante da orla de Fortaleza fui ao bem cuidado banheiro do lugar. Logo ao trancar a porta da higiênica cabine e sentar no “trono”, me deparei com uma original poesia escrita na parede. Em que pese a natureza predatória e reprovável das pichações em lugares públicos, aqueles criativos versos permaneceram em minha memória e provocaram uma reflexão sobre o dedicado momento:


              Neste lugar solitário

              Onde a vaidade se acaba

              Todo covarde faz força

              Todo valente se caga

(imagem Google)

sábado, 21 de novembro de 2009

101 - FECHANDO O GOL



           Grande parte do povo brasileiro acredita e faz uso de simpatias, feitiços, magias, mandingas, encantamentos, orações, amuletos, talismãs, feitiçarias, benzimentos e tudo mais relacionado com as ciências ocultas.

           No popular ambiente futebolístico as crenças estão ainda mais presentes. Os torcedores e os próprios atletas mantêm comportamentos supersticiosos buscando elevar o rendimento, pois acreditam que ajudam a equipe no alcance de suas metas. Há jogadores que não trocam a chuteira ou a cueca porque na primeira vez que as usou fez gols ou jogou bem.

          Eu não acreditava muito nessas coisas, mas recentemente minha amiga e conterrânea Klébia Fiúza me ensinou uma mandinga infalível. A simpatia cita um popular e irreverente varzealegrense, conhecido por suas histórias engraçadas. Consiste simplesmente em repetir umas palavras no momento em que o time adversário ataca. A frase, repetida com fé, fecha a nossa meta, impedindo o gol da equipe contrária.

         Neste final de semana, quando meu Fortaleza joga suas últimas chances de permanecer na série B e o querido Flamengo tem jogo decisivo na disputa pelo título do Brasileirão, usarei mais uma vez a frase mágica. No momento em que a bola chegar ao campo de defesa dos meus times eu repetirei insistentemente:

       - Cu de Zé de Lula. Cu de Zé de Lula. Cu de Zé de Lula...


(imagem Google)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

100 - KARIRIS E TUCUJUS






        Por sua grandiosidade e beleza o Rio Amazonas chama a atenção de todos que visitam Macapá, sobretudo aqueles oriundos das terras secas do nordeste brasileiro. Há alguns dias, com enorme prazer, recebi em solo tucujus o meu tio Paulo Danúbio, o meu irmão Luiz Fernando e o meu primo Antônio Costa. Como eu, todos nascidos na também acolhedora Várzea Alegre, município cearense encravado no sertão do cariri.

        Para o primeiro dia da viagem programei um passeio com os visitantes por um inesquecível “roteiro de águas”. Antes, porém, para satisfação do aguçado apetite dos turistas, saboreamos deliciosas porções de peixe grelhado e doses de camarão no bafo no restaurante Flora, instalado em palafitas sobre o Igarapé da Fortaleza. Logo após o farto almoço iniciamos o esperado passeio de lancha em direção ao rio Matapi*, onde observamos parte da riqueza natural amazônica. Para nosso deleite e encantamento, em uma sinuosa curva, fomos recebidos por vários botos, lendários mamíferos que habitam rios do norte brasileiro.

        No fim do passeio, paramos para sentir a refrescante brisa do majestoso Amazonas, que batia suas águas contra o muro de arrimo da Avenida Beira-Rio, próximo à exuberante Fortaleza de São José de Macapá. Em dado momento, quando olhava para o leito do infindável rio, tio Paulo recebeu um telefonema do primo, amigo e conterrâneo Irapuan Costa. Certamente lembrando-se das secas do nordeste e da intermitência dos pequenos rios do Ceará, o bem humorado professor foi logo dizendo:
 
        - Puan, quando tiver um bom inverno no Ceará não vá me ligar dizendo “Paulo, o Machado** desceu suberbando numa cheia danada”.



* afluente do Rio Amazonas que banha o Estado do Amapá.

**riacho temporário que cruza grande parte do Município de Várzea Alegre.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

99 - ÚLTIMA MERENDA





         Francisco Basil de Oliveira, ferreiro aposentado, ganhou fama em Várzea Alegre pela maneira cômica de contar histórias simples do cotidiano cearense. Nada escapa da suas narrativas, nem mesmo momentos críticos e delicados da existência humana. Sobre a certeza da morte, o espirituoso e realista Chico Basil costuma dizer:

         - O rim de morrer é não poder espantar as moscas.

        Entre suas várias histórias sobre a viuvez, o ferreiro conta como verdadeira uma acontecida há vários anos no Riacho Verde, progressista Distrito varzealegrense.

        Certa tarde uma velha senhora cuidava de seu moribundo esposo que sofria em uma rede. O pobre enfermo, respirando com dificuldade, disse:

        - Muié, pelo cheiro tu tá fazendo bolo de caco, né? Me dê um pedacin.

        Enxugando a testa do febril esposo, ela argumentou:

       - Mas Zé, que é que eu vou servir na boca da noite, quando o povo começar a chegar pa teu velório?


*colaboração: Antônio Alves da Costa Neto
(imagem Google)

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

98 - DIRCEU ÁLVARES CABRAL






         Minha avó Maria Amélia lecionou por algum tempo na escola São Vicente, em Várzea Alegre. Sempre nas datas cívicas, a esforçada professora trazia para a modesta escola a cúpula da conferência que mantinha o educandário.
 
        No início da década de sessenta, em uma semana da Pátria, os membros da instituição filantrópica foram mais uma vez convidados a participar do evento na escola. Ali estavam várias personalidades, entre as quais Miguel Delfonso, Zé Sobrinho e Dirceu de Carvalho Pimpim, este último pai da professora e abastado dono de usina de algodão e de várias outras propriedades do pequeno município do sertão cearense.
 
        Com todos reunidos, a dedicada professora resolveu demonstrar aos convidados o conhecimento de seus alunos. Para começar a sabatina chamou o menino Líncoli Matias para frente da sala e perguntou:
 
         - Líncoli, quem descobriu o Brasil?
 
        Olhando para o homem mais importante e rico que conhecia, o ingênuo garoto disse:
 
        - Dona Maria, num foi seu Dirceu ?



(imagem Google)

domingo, 25 de outubro de 2009

97 - INTELIGÊNCIA DA VIDA






       O festejado psiquiatra e psicoterapeuta brasileiro Augusto Cury ensina como ser gestor das próprias emoções, decifrando o código da inteligência para administrar sentimentos e gerenciar os temores, medos, angústias e aflições da vida.

       Até parece que o paulista de Colina, cujos livros invadiram as listas dos mais vendidos, conheceu e estudou minha querida avó materna Maria Amélia. A sábia varzealegrense, mesmo em momentos de muitas dificuldades e perdas, buscava controlar suas emoções e “fazer sua própria cabeça”.
 
       No início da década de oitenta, como o apertado orçamento de professora aposentada não permitia nenhum luxo, minha avó continuava assistir a seus programas favoritos em imagem preto e branco de seu antigo aparelho de TV.

       Exatamente até o dia em que foi presenteada por seu filho caçula Paulo Danúbio com um televisor novo e a cores, ela justificou sua preferência pela antiga:

      - Não troco minha velha televisão nem por duas coloridas. Nan, li na revista manchete que essas tevês cheias de cor fazem muito mal a vista das pessoas.


(imagem Google)

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

96 - CONTROLE DE QUALIDADE




        Em pouco tempo as tevês digitais invadirão definitivamente os lares brasileiros. Os especialistas defendem que a nova tecnologia trará inúmeras vantagens. Além de melhor imagem e som, os telespectadores poderão interagir com a programação e ainda acessar a internet. Todas essas novidades obrigarão a tevê a reinventar seus programas e certamente forçarão a publicidade a iniciar um novo ciclo.

        Desde o surgimento em meados do século passado, o revolucionário mundo televiso já passou por várias transformações. Ao longo do tempo, o telespectador foi se tornando mais independente na escolha dos canais, sobretudo com o surgimento dos cômodos controles remotos.

        Mas no começo era complicado até a troca de canal. Para não forçar a dura e barulhenta chave de mudança da tevê, na década de setenta, na casa de meu tio João Gonçalves Costa, havia um modo diferente de intervir na programação.

       O nervoso João Fosquin não suportava assistir a algumas propagandas, mesmo a premiada aparição do “Bombril e suas mil e uma utilidades”. Para evitar um surto descontrolado, Maria Amélia e Fátima ficavam atentas no intervalo e jogavam um lençol sobre o aparelho de TV quando surgia uma propaganda que feria os nervos do seu querido pai.


(imagem Google)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

95 - ARTILHARIA



       O menino que nasceu Raimundo se transformou em João Sem Braço logo após passar pelo infortúnio de perder o membro superior esquerdo em um acidente. Mas a falta do braço não impediu o conhecido varzealegrense de atirar de baladeira, jogar sinuca e realizar com habilidade também outras atividades que exigem a utilização dos dois membros.

       Em um campeonato realizado na quadra de esportes da Escola Presidente Castelo Branco, João Sem Braço foi escalado para jogar Futebol de Salão, hoje futsal, pelo time de alunos do Colégio São Raimundo Nonato.

        A equipe até iniciou bem o campeonato, mas, na ultima partida, contra o rival Presidente Castelo, sofreu dois gols ainda no primeiro tempo. Descontrolado, João Sem Braço, para surpresa da torcida nas arquibancadas, passou a chutar contra a baliza defendida pelo goleiro do seu time. Era só a bola chegar aos seus pés que o descontrolado jogador chutava fortemente contra o próprio patrimônio. Depois de sofrer uns cinco gols contra, o técnico finalmente pediu um tempo e, com rispidez, se dirigiu ao seu atleta;

       - João Sem Braço, você ficou doido? Por que ta só fazendo gol contra?

       Com seu jeito irreverente, o Jogador apresentou sua justificativa:

       - Já que vamos perder o campeonato, quero ser pelo menos o artilheiro.



Colaboração: Klébia Fiúza

(imagem Google)

terça-feira, 13 de outubro de 2009

94 - COMIDA A QUILO




        A maior dificuldade na mesa é manter o equilíbrio entre a qualidade e a quantidade da comida ingerida. Mesmo sabendo que para comer bem não precisa comer muito é difícil se saciar com um simples pratinho de folhas. Em Várzea Alegre, uma boa refeição não dispensa uma grande porção de arroz.

        Meu tio materno Antônio Ulisses sempre foi um bom garfo e transferiu sem reservas o seu voraz apetite para os filhos Antônio Costa e Dirceu. Há alguns anos, Antônio Ulisses viajou a passeio para Fortaleza e levou seus filhos para a concorrida Praia do Futuro. Na beira do poço, na Barraca do conterrâneo Pedro Bó, Antônio Ulisses resolveu variar o cardápio do sertão e pediu uns caranguejos.

        Logo que o garçom serviu a comida, Antônio Costa e Dirceuzin, com o apetite ainda mais aguçado, armaram-se com o pedaço de pau para comer os caranguejos. Porém, desconhecendo a técnica do “toc toc” e pouco acostumados com o prato típico do litoral cearense, os meninos se decepcionaram com a dificuldade de encontrar a pouca carne do crustáceo. O esfomeado Dirceuzin, não tendo outra mistura qualquer para encher o bucho, olhou para o seu pai e, com sua voz rouca, disse:

      - Pai, vai demorar pa nós comer um quilo desse bicho.



* colaboração: Hudson Batista Rolim

domingo, 11 de outubro de 2009

93 - O ENCONTRO DE LAMPIÃO COM SEU ABEL

  


        Nascido no sertão do Pajeú, zona rural do atual município de Serra Talhada, estado do Pernambuco, Virgulino Ferreira da Silva, conhecido como Lampião, se notabilizou no início do século passado pelas suas ações bandoleiras nas terras secas do nordeste brasileiro.

        A notoriedade conquistada pelo cangaceiro transformou parte de sua história em grande mistério. Os inúmeros estudos e pesquisas já realizados não lograram provar várias façanhas e atrocidades atribuídas ao “Rei do Gangaço” e seu bando.

         Alberto Pedro dos Santos, humilde trabalhador conhecido como seu Abel, proprietário da imaginária Pedra de Clarianã, chegou à Várzea Alegre vindo do sertão da Paraíba. Como muitos que viveram na época do cangaço, seu Abel também contava o seu fantasioso encontro com o bando de Lampião e como conseguiu passagem, episódio acontecido numa vereda da caatinga paraibana.

       - Quem vem lá? De onde vem e para onde vai? – perguntou o temido cangaceiro, .

              - Me chamo Alberto Pedro

              Venho do café de Nicola

              E vou para o outro mundo

              Se disparar a pistola.


(imagem Google)

sábado, 10 de outubro de 2009

92 - LAGOSTA




           Depois de estudar alguns anos no Colégio Agrícola de Lavras da Mangabeira, Paulo Danúbio se mudou para Fortaleza no início da década de setenta. No Liceu do Ceará, foi cursar o primeiro ano do ginasial – hoje sexta série do ensino fundamental.

           O aluno, que mais tarde se formou em biologia pela Universidade Estadual do Ceará e se tornou um bem conceituado professor, adorava as aulas de ciências. Já nos primeiros dias, logo que chegou ao tradicional colégio da Capital Alencarina, buscou participar ativamente das aulas. Certo dia, a professora de ciências, falando sobre os aspectos alimentares e nutrição dos crustáceos, fez uma pergunta aos alunos:

         - Quem aqui da sala já comeu Lagosta?

          Para a surpresa da mestra, o aluno Paulo Danúbio foi o único a levantar o braço.

          - Mas Paulo, você acabou de chegar do interior, não sabia que os crustáceos faziam parte da culinária de Várzea Alegre.

         - Desculpa, professora, eu não entendi direito. Lagosta era uma jumentinha que vivia lá pelos tabuleiros perto do colégio agrícola das Lavras.


(imagem Google)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

91 - PRENDENDO A BOLA




         É perceptível e louvável o atual esforço da polícia para se aproximar da população. O modelo da segurança comunitária, onde os policiais agem com o apoio e em favor dos cidadãos, espalha-se entre as corporações do país. A cada dia apresentam experiências inovadoras e vitoriosas que atendem os reclames e anseios da sociedade.

          Mas, na década de setenta, em Várzea Alegre, a polícia possuía uma missão e um inimigo pouco comum: apreender bolas de indefesas crianças. Impossível descobrir qual o potencial ofensivo de uma bola ou da infração praticada por meninos que jogam na rua. Como não havia risco de acidentes, pois a frota de veículos da cidade era diminuta, certamente a operação policial surgiu em decorrência de algum comodista que se chateou com a alegria dos garotos brincando pelas calçadas.

         Contudo, numa estreita pracinha que separava a Rua Duque de Caxias, atual Calçadão Antônio Alves Costa, bem no centro comercial, todo final de tarde, eu, Júlio, Geraldo Filho, Fernando, Paulo Roberto, Zé Wilton, Serginho e outros garotos desobedecíamos a ordem policial. Descobrimos uma forma de não interromper nossas partidas. Jogávamos descalços e com a bola mais barata do mercado, comprada na bodega de Seu Nenê, localizada bem ao lado da improvisada quadra de futebol. Se a polícia surgisse de repente e apreendesse nossa bola, adquiríamos imediatamente outra.

       O único inconveniente da estratégia era que, em decorrência da baixa qualidade da pequena bola, do estado precário da improvisada quadra, e, principalmente, da pouca habilidade dos jogadores, todo dia alguns voltavam pra casa com a “cabeça do dedo” arrancada.


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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

90 - ESFRIANDO O SERTÃO





        Projetos arquitetônicos com pé direito e cumeeira altos formam uma tendência que volta ao sucesso nos atuais empreendimentos de luxo. Esses detalhes, aliados a existência de várias portas e janelas, permitem a entrada de luz natural e garantem a boa ventilação do ambiente, diminuindo o consumo de energia elétrica.

        Com algumas dessas características, o casarão situado na antiga Rua Major Joaquim Alves, em frente à igreja matriz de São Raimundo Nonato em Várzea Alegre, antiga residência do Padre José Gonçalves, por várias décadas também foi habitado pelo Coronel Dirceu de Carvalho Pimpim e sua família.

        Para permitir a ventilação e amenizar o forte calor cearense, a grande casa, construída no início do século 20, ostenta exatamente cento e nove portas e janelas. Na época, não havia energia elétrica, e, por conseguinte a mordomia e comodidade do ventilador e ar-condicionado para amenizar os dias e noites quentes do sertão.

        Maria Francalino de Souza, conhecida como Mãezinha, responsável pelos afazeres domésticos do casarão, ainda cedo da manhã iniciava a abertura das portas e janelas. Eram tantas que, quando Mãezinha concluía sua tarefa, seu Alberto e Zé Goteira, outros funcionários da casa, já haviam começado a fechar as portas e janelas e recolocar as centenas de traves e ferrolhos da conhecida residência do Coronel Dirceu Pimpim.


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terça-feira, 6 de outubro de 2009

89 - ZÉ GATINHA





         Nos palcos do futebol circulam outras estrelas além dos jogadores - protagonistas do esporte. Ao lado do campo, próximo ao banco de reservas, os técnicos gritam, se esgoelam, buscando transmitir informações para os seus comandados e também aparecer nas transmissões televisas. Tanto que hoje em dia, profissionais como Vanderlei Luxemburgo, Muricy Ramalho, Felipão e Dunga recebem salário e gozam de prestígio comparáveis aos melhores e mais famosos atletas.

         Porém nem só nos grandes campeonatos do sul do país os professores do futebol merecem destaque. Nos campos secos e batidos do sertão cearense já surgiram grandes técnicos.

        Ainda em 1968 Várzea Alegre formou uma inesquecível seleção, vencedora de vários disputas com as cidades vizinhas. Sob o comando da vitoriosa equipe, destacava-se José Adálio da Silva, conhecido como Zé Gatinha. O técnico, de pequena estatura, mesclava seu conhecimento futebolístico com o seu estilo bem humorado e brincalhão.

         Pouco antes de toda partida, no interesse de motivar os jogadores, no meio do campo, Zé Gatinha reunia a seleção varzealegrense e realizava a preleção:

         - Olha, moçada, vamos jogar na bola. Mas sem esquecer que do pescoço pra baixo tudo é canela.

* baseado no vídeo da MV Produções, com locução de Souza Sobrinho

(imagem Google)


segunda-feira, 5 de outubro de 2009

88 - CABEÇA DE PORCO





        No interessante vídeo da MV Produções, coletânea histórica e cultural de Várzea Alegre, Souza Sobrinho registra o trabalho de vários artistas, entre os quais Pedro de Souza, Chico de Amadeu, Bié, Zé Clementino, Serginho Piau e Bidin. Além disso, relembra passagens pitorescas de espirituosos filhos da Terra do Arroz, como o sempre enraivado Mundin da Varjota.

         É importante ressaltar que o nacionalmente famoso seu Lunga de Juazeiro é uma moça de polidez e delicadeza perto do que foi o nosso Mundin.

         Em uma sexta-feira à tarde, Mundin da Varjota chegou em casa trazendo do mercado de carnes a cabeça de um porco. De imediato, entregou a compra à sua esposa Cecília, já imaginando o saboroso cozido e a apetitosa farofa que sairia na janta. No entanto, foi surpreendido com a pergunta da mulher:

         - Mundin, o que é peu fazer com a cabeça desse poico ?

         Antes que a dedicada Cecília fechasse a boca, o enfezado e impaciente Mundin já foi respondendo:

        - Ponha no chiqueiro, dê muito mii e espere ele engordar pra gente comer.


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quinta-feira, 1 de outubro de 2009

87 - LADRÃO DE RELÓGIOS





         Teodora Gomes Fiuza, conhecida como Dona Dozinha, e minha avó Maria Amélia emprestam seus nomes para escolas de Várzea Alegre. As duas professoras foram homenageadas em vida pelo prefeito José Iran Costa por conta da contribuição com o ensino da cidade. Mesmo experimentando intensas dificuldades, sempre espalharam esperança, solidariedade e bom humor e semearam exemplos de lucidez e fortaleza para todos que tiveram o privilégio de com elas conviver.

          Recentemente descobri que as duas adoravam relógios e sofreram com a perda desses objetos. Minha avó foi vítima de um estelionatário em Fortaleza que conseguiu enganá-la e levar o relógio dourado que ganhara do seu filho Paulo Danúbio. Já dona Dozinha se queixava do desaparecimento de um relógio de ouro que fora do seu pai, guarda civil. Ela abordava qualquer um que chegasse à casa de sua filha Brazão e indagava sobre o precioso objeto.

          Até nos últimos dias de vida Dona Dozinha manifestou a esperança de recuperar o surrupiado relógio de ouro. Quando uma de suas netas veio de Portugal passar uns dias de férias em Várzea Alegre, dona Dozinha, com seus 102 anos de idade, sempre atualizada, falou:

          - Klébia Rejane, agora eu vou encontrar o relógio de papai. Coloquei um aviso na internet.


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quarta-feira, 30 de setembro de 2009

86 - TEREZINHA PÃO E VINHO





         O cine São Luiz também marcou a vida da minha mãe. Ao ler a postagem “lanterninha”, ela recordou detalhes da inauguração daquele belíssimo cinema. Era 1958 e Fortaleza ainda contava com cerca de quinhentos mil habitantes. Pela terceira vez Terezinha se mudava temporariamente para a Capital Alencarina. Aldair estava grávida de Maria Amélia e novamente precisou do auxílio e apoio da irmã mais nova.

         Naqueles dias, a cidade vivia um clima festivo por conta da nova casa de cinema do empresário cearense Luiz Severiano Ribeiro. Ainda pouco acostumada com as novidades da capital, Terezinha ficou deslumbrada com a possibilidade de assistir a um dos filmes da mostra de inauguração. Assim, levada por seu irmão João Costa, a menina foi ver a emocionante película espanhola Marcelino Pão e Vinho.

         Na famosa Praça do Ferreira, ainda na fila formada em frente à bilheteria do cinema, percebeu que aquele mundo era bem diferente da realidade da sua pequena Várzea Alegre. Os homens trajavam paletós bem cortados; as mulheres esbanjavam elegância em suas roupas. Ao contrário da opulência dos presentes, a pequena garota usava um modesto vestido de tecido comum na época - túlio, que seu pai ganhara em uma rifa.

        A história do menino criado por monges franciscanos, a imponência e a sofisticação do novo cinema e a aparência nobre dos expectadores permaneceram na sua imaginação.

        Depois de vários meses em Fortaleza, voltou para Várzea Alegre. No reencontro percebeu que uma amiga, também adolescente, crescera bastante. Embora não tenha aumentado sua estatura no tempo que permaneceu na capital, a pequena Terezinha logo se conformou, afinal vivera como gente grande na inauguração do tradicional Cine São Luiz.


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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

85 - LANTERNINHA





          O sinal de televisão com qualidade, sem chuvisco e chiado, demorou a chegar ao sertão cearense. Somente no final da década de setenta, com o surgimento das antenas parabólicas e outros meios modernos de retransmissão, foi que passamos a acompanhar com regularidade os programas televisivos.

          Em férias escolares, quando eu viajava para Fortaleza me contentava em ficar o dia inteiro diante do aparelho de televisão vendo desenhos animados. Nada desviava minha atenção da Pantera Cor de Rosa, do Tom e do Jerry ou do Marinheiro Popeye. E se a televisão em preto e branco de minha avó Maria Amélia já me encantava, imagine ver uma comédia infantil na tela gigante de um moderno e confortável cinema. Pois, em uma dessas viagens, no ano de 1977, meu tio Paulo Danúbio me levou junto com meu primo Sergio Ricardo para assistirmos no famoso cine São Luiz ao filme campeão de bilheteria daquele ano: O Trapalhão Nas Minas do Rei Salomão.

          Encantados com a beleza do cinema, eu e Serginho nos divertíamos com as graças e estripulias dos personagens de Renato Aragão, Dedé Santana e Mussum. No meio do filme, fomos surpreendidos com um avião de papel que voara pela projeção e caíra sobre nós. Eu, de imediato, apanhei o avião, e o arremessei novamente. A sombra do avião foi projetada na grande tela.

          Pouco tempo depois chegou um senhor com uma lanterna na mão e chamou tio Paulo.  Os dois conversaram baixinho por algum tempo. Embora concentrado no filme, eu percebi que meu tio gesticulava muito e nos apontava insistentemente.

          Logo na saída do cinema, ainda na movimentada e tradicional Praça do Ferreira eu perguntei:

         - Ti Paulo, o que aquele homem da lanterna queria com o senhor?

         - Comigo nada. Ele queria era botar vocês pra fora. Não pode jogar papel pra cima. Atrapalha o filme. Ele só desistiu quando eu disse a ele assim: “Seu lanterninha esses mininos vieram do interior. Viajaram quase quinhentos quilômetros só pra ver os Trapalhões”.


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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

84 - SECANDO A PISCINA




          Não é só um sorriso fácil que desperta simpatia. Outros gestos, também nobres, permitem a afeição, a amizade e o reconhecimento de todos. Meu padrinho José Iran Costa, de bigode e cara fechada, não precisava mostrar os dentes para ser simpático. Sua vida pública e seus serviços prestados possibilitaram um elevado conceito entre as mais diversas classes sociais de Várzea Alegre. Sem esquecer que o dedicado médico possuía um jeito diferente e bem humorado de emitir suas opiniões e contar histórias.

          No Bairro Betânia ou no Sítio Baixio do Exu doutor Iran patrocinou inúmeros momentos de alegria. Certo dia, uma dessas festas já avançava por todo o final de semana como comum nos encontros da família. Seus filhos, sobrinhos e amigos bebiam e comiam sem parar. Em dado momento, seu irmão Irapuan comentou:

          - Iran, você devia mandar encher essa piscina. Não é bom a piscina ficar seca, pode até causar rachadura.

          O experiente médico, observando de longe o movimento dos incansáveis festeiros, tirou seu cigarro de fumo da boca e disse calmamente:

          - Irapuan, meu irmão, você é engenheiro e entende de rachadura. Mas quem é doutor nessas festas aqui na Betânia sou eu. Se com a piscina seca já faz três dias que eles bebem e comem a minhas custas. Você imagina se eu encher essa piscina.


*colaborador: Irapuan Costa
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domingo, 13 de setembro de 2009

83 - BAIÃO 'VERSUS' PIZZA




          Com cerca de quatorze anos de idade, no à época isolado sertão cearense, meus hábitos alimentares eram bem ortodoxos. Em casa, como comum, o fogão funcionava de acordo com a rotina do mercado de carnes da cidade. Em cada dia da semana minha mãe servia um prato diferente. Lembro que toda sexta, dia da matança dos animais, tinha fígado de boi no jantar. No almoço do sábado, apreciávamos a “carne batida”, conhecida em outros lugares como picadinho. A deliciosa galinha caipira só enfeitava o cardápio do almoço dos domingos.

          Hoje lembrei que graças ao meu padrinho José Iran Costa conheci a culinária de outros lugares. Eu estava no Crato para passar apenas o dia curtindo o parque de exposições, e Iran Junior e seu pai convenceram meu pai para que eu ali permanecesse no tradicional evento do interior nordestino.

          Assim eu fiquei por mais uns dias no progressista Crato junto com doutor Iran e sua família. Foram dias inesquecíveis, repletos de divertimentos e novidades. Em um fim de tarde, fomos a um restaurante e nos foi servido algo diferente. Uma massa com coberturas coloridas trazida em uma forma arredondada. Eu estava sendo apresentado à pizza. Quando madrinha Lolanda me ofereceu o tradicional prato italiano, eu, garoto tímido, mesmo sem nunca ter provado da estranha comida, por não saber sequer como me servir, disse:

          - Obrigado madinha, eu não gosto dessa pizza.

          Assim, eu jantei com o meu padrinho Iran um tradicional baião de dois, enquanto com o canto do olho observava seus filhos Guilherme e Iran Junior, usando estranhos molhos vermelhos e amarelos, degustar a aparentemente saborosa massa italiana.


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segunda-feira, 7 de setembro de 2009

82 - GUIA ENFEZADO

         Os estudiosos em neurolinguística defendem que o cérebro só registra o não quando usado em uma negativa simples. Por outro lado, acompanhando uma imagem o não é ignorado pela mente. Assim, frases como não fume ou não beba, ao contrário do que se pretende, constroem imediatamente na imaginação de quem as ouve o cigarro ou a bebida.

         Meu tio materno João Gonçalves Costa ainda muito jovem deixou o sertão cearense e foi sentar praça* no sul do país. A partir daí não mais voltou a residir na pequena Várzea Alegre. Morando em lugares distantes, desenvolveu uma forma original de ensinar os recém-chegados a andar pelas grandes cidades.

         Sempre com os nervos à flor da pele, quando alguém precisava aprender um novo caminho para o trabalho ou para a escola o magro e mouco João Fosquin, contrariando a lei da atração e outras teses modernas de reprogramação mental, ensinava:

         - Tá vendo aquela igreja ali na frente? Não vá por ali. Se for por lá, você se perde. Vá por aqui – finalizava o impaciente guia, virando-se e apontando em direção oposta ao templo inicialmente referido.

* alistar-se nas forças armadas

sábado, 5 de setembro de 2009

80 - SLOW FOOD


        A agitação e a correria da vida moderna impõem a prática de refeições rápidas. Cada dia aumenta o número de estabelecimentos comerciais que oferecem o fast food. Sempre apressadas, muitas pessoas sequer sentam para ingerir o alimento, ocasião que ainda tratam de assuntos desagradáveis e inadequados para o importante momento.

         Mas no início do século passado, na cidade de Várzea Alegre, meu bisavô Dirceu de Carvalho Pimpim cultivava hábitos bem mais saudáveis. Mesmo com muitas propriedades e intensos negócios para administrar mantinha uma vida regrada e metódica.
         Seu Dirceu deitava e acordava cedo, ia à mesa para farto café da manhã, mantinha cuidado com a aparência física, estimulava a ingestão de frutas, se protegia do causticante sol do sertão cearense, lavava as mãos antes das refeições e já possuía em casa água encanada e banheira para completa higiene corporal. Para lazer e contemplação da família construiu uma casa no Brejinho, sítio próximo à sede do Município, e denominou Santa Rosa em homenagem à esposa Rosa Gonçalves de Carvalho, tratada carinhosamente por todos como "Madrinha Dosa".

         No ano de 1917, Dirceu e Rosa almoçavam em sua casa quando alguém surgiu repentinamente na sala de jantar. Percebendo que se tratava de assunto grave, o Coronel Dirceu se levantou e foi ver o que acontecia. Um homem trazia péssima notícia. O Padre José Gonçalves, da paróquia de São Raimundo Nonato, irmão de Rosa, fora encontrado morto no sítio Bonizário. Mesmo transtornado com a inesperada notícia do falecimento do seu querido cunhado, Dirceu calmamente disse ao mensageiro:

       - Pode deixar que eu mesmo aviso a “Dosa”.

       Com a certeza de que o horário das refeições é sagrado e não permite assuntos desagradáveis Dirceu voltou à mesa e continuou comendo. Só cerca de uma hora após o almoço, com a digestão dos alimentos praticamente concluída, chamou sua amada mulher e relatou a tragédia acontecida com o Padre José Gonçalves.

        Certamente, atitudes como esta influenciaram na longevidade dos meus bisavôs, pois o casal viveu por quase cem anos e completou mais de setenta e cinco anos de casados, comemorando bodas de diamante.

sábado, 29 de agosto de 2009

79 - REVELADO EM SONHO


          Para custear parte das despesas com a educação de seus vários filhos, o agricultor varzealegrense Raimundo Bitu, conhecido como Padim, durante algum tempo cultivou tabaco para produção de fumo nas terras baixas e férteis do sítio Sanharol. De afiado senso de humor e incontida irreverência, suas histórias representam o jeito simples e inteligente do homem do sertão.

          Certo dia, impedido de umas tragadas por conta da falta de dinheiro, Mané de Vó, nascido Manoel Inácio, morador do mesmo sítio, apelando para o sentimentalismo e saudosismo de Padin, disse:

         - Cumpade Raimundo, sabe com quem sonhei essa madrugadinha? Com tua mãe e ela mandou dizer que você me arrumasse uma rola de fumo.

        - Eita, cumpade, que coisa! Essa boca da noite dei um cochilo e sonhei com sua mãe também. Ela foi logo me dizendo, Raimundo peça pra Mané parar de fumar.

Colaboração: Francisco de Assis, conhecido como Tico de Mané de Vó.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

78 - RESERVA DE LUXO





         Por muitos anos o Estado do Ceará dominou o futebol de salão, sobretudo através do SUMOV, equipe que conquistou por seis vezes a Taça Brasil. A existência de inúmeras quadras para a prática do esporte certamente contribuiu para o aprimoramento dessa modalidade esportiva entres os cearenses.

         No início da década de 80 meu estimado primo Aeldo Costa Campos Júnior foi goleiro reserva da equipe de futsal do colégio em que estudava em Fortaleza. Embora bastante esforçado, sempre usando impecável material esportivo, o galego nunca conseguia atuar nos jogos, apenas esquentava o banco de suplentes.

        Porém, certo dia, em uma acirrada competição intercolegial, surgiu a tão esperada oportunidade de mostrar o seu potencial de arqueiro. Por conta de uma forte dividida com um jogador da equipe adversária, o goleiro titular sofreu uma grave lesão, torcendo o tornozelo. Enquanto o titular era atendido e se contorcia em dores, Aeldo Júnior começou a se alongar e iniciar o aquecimento. Os demais alunos do colégio, na torcida, pressentindo que finalmente veriam o enfeitado goleiro entrar na quadra, passaram a gritar pelo apelido do loiro goleiro reserva:

        - Arara, Arara, Arara...

         Entretanto, o técnico da equipe preferiu retornar com o goleiro titular, que não conseguia sequer firmar direito o pé inchado no chão e nem disfarçava seus gemidos e expressões de dor. Preterido por um atleta de um só pé, a decepção tomou conta de Aeldo Júnior. Não bastasse, em evidente zombaria, a torcida continuou a gritar:

       - Arara, Arara, Arara...


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terça-feira, 25 de agosto de 2009

77 - OURO BRANCO

           Nos últimos dias do mês de agosto Várzea Alegre vive uma grande festa. Na homenagem ao padroeiro São Raimundo Nonato, a cidade do sertão cearense recebe inúmeros visitantes e se emociona com a volta de milhares de varzealegrenses que migraram para diversos lugares do mundo. Além das intensas atividades religiosas, com salvas de fogos, novenas e procissão, o clima festivo toma conta da receptiva cidade, especialmente no parque de diversões e nas barracas instaladas nas ruas centrais.

           Ainda no auge da produção do algodão arbóreo, início da década de oitenta, antes da arrasadora praga do bicudo*, o agricultor Gilson Primo procurou o seu amigo Antônio Ulisses para vender várias sacas do “ouro branco”. Na verdade, se tratava de antecipação da safra, pois se aproximava o marco inicial das comemorações - dia do levantamento da bandeira - e Gilson buscava dinheiro para investir na ansiada festa de agosto. Sentado em sua cadeira de balanço na calçada alta do escritório de compra e venda de algodão e oiticica, localizado no início da “Rua dos Perus”, o corretor Antônio Ulisses perguntou:

          - Gilson, você vai querer quanto?

          O repentista e divertido agricultor, já imaginado onde e como gastaria o dinheiro, com sua forma pausada de articular as palavras, disse:

          - Antônio Ulisses, bote o que der, mas note aí na ficha de São Raimundo, pois vamo nas barracas trocar tudo por bagos de garrafa.



* Bicudo-do-algodoeiro (Anthonomus grandis) besouro responsável por importante praga agrícola nos E.U.A., introduzido no Brasil em 1983 e causador de enormes prejuízos nas plantações de algodão do sertão nordestino.(fonte: Wikipedia)

Colaboração: Antônio Alves da Costa Neto

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

76 - TURISTA




       Minha tia Rosa Amélia aceitou meu convite e dias atrás veio conhecer o Estado que me acolheu. Em apenas uma semana de passeio, com sua simpatia e contagiante disposição, saboreou da deliciosa vida no Amapá.

        Comeu várias doses de camarão no bafo na praia do bucólico distrito de Fazendinha. Ao lado da histórica igreja de São José, provou uma cuia do tradicional tacacá, servido na calçada da central e movimentada Rua São José. No Igarapé da Fortaleza tomou açaí "do grosso" misturado com farinha de tapioca. Foi à feira do produtor rural comprar castanha-do-pará, cupuaçu e molho de tucupi. Depois de visitar a Casa do Artesão, bebeu latas de cerveja com sal e limão preparada por Lourival. Em passeios pela orla, especialmente no “lugar bonito”, contando com a proteção das centenárias muralhas da bem conservada Fortaleza de São José de Macapá, se refrescou com a brisa soprada nas margens do gigantesco Rio Amazonas.

       No interior, no aprazível Município de Ferreira Gomes, antes de se deliciar com uma bem servida caldeirada de peixe, minha tia banhou-se feito criança nas águas límpidas do Rio Araguari, bem longe de sua foz e de onde acontece o famoso fenômeno da pororoca.

        É bem verdade que faz muito bem viajar, conhecer novos lugares, contatar pessoas e culturas diferentes. Mas para tia Rosa Amélia sua vinda ao Amapá trouxe ainda mais benefícios. Ao voltar para Várzea Alegre, fez o seguinte comentário:

        - Gostei tanto do passeio que cheguei me sentindo mais jovem e mais bonita. Só quando me vi no espelho do meu quarto notei que ainda continuava com as marcas dos meus setenta e cinco anos de idade.


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terça-feira, 18 de agosto de 2009

75 - O PEDIDOR DE ESMOLAS

          Com cerca de dez anos de idade, Antônio Ulisses viajou pela primeira vez à Capital do Estado. Foi passar férias na casa do seu irmão mais velho, o também saudoso João Costa, conhecido carinhosamente por João Fosquin, em razão do seu corpo esbelto.

          Já em Fortaleza, após percorrer os mais de 400km da longa viagem, o menino Antônio Ulisses, depois de descer do caminhão-misto, trazia debaixo do braço a rede onde dormiria naqueles dias de passeio pela capital alencarina. Desde criança, Antônio Ulisses foi desajeitado, descuidado e, naquela manhã, não percebeu que a rede havia desenrolado e os cordões do punho se arrastavam pelo chão.

           Ele seguia logo atrás do seu irmão e, em determinado momento da caminhada, em frente ao famoso Cine São Luiz, João se encontrou com um colega de trabalho. Também muito espirituoso, não quis apresentar aquele garoto esquisito como seu irmão e se dirigiu ao pequeno dizendo:

         — Eu já disse “perdoe” a este menino não sei quantas vezes e ele não larga do meu pé.


*Do livro Conte Essa, Conte Aquela - Hisotórias de Anônio Ulisses"